Brasileiro com rara condição física ajuda cientistas a entender por que é difícil reconhecer rostos invertidos
Figura 1. Cláudio tipicamente observa rostos invertidos no dia-a-dia. |
Quando você vê um rosto familiar na sua posição normal de visão, ou seja, virado para cima, conseguimos facilmente reconhecê-lo. De fato, nosso cérebro evoluiu no sentido de prontamente identificar pistas faciais e reconhecer rostos familiares (1). Porém, quando o mesmo rosto familiar é virado para baixo, torna-se muito mais difícil reconhecê-lo e os cientistas não sabem ao certo se isso é resultado puramente de experiência - o cérebro acostuma-se ao longo da vida com rostos virados para cima porque esse é o normal no dia-a-dia - ou se isso possui também raízes evolucionárias - o cérebro foi condicionado ao longo da evolução a identificar pistas faciais associados a um referencial específico ("rosto para cima"). Agora, em um estudo publicado no periódico iScience (Ref.1), pesquisadores jogaram uma luz na questão ao estudar o brasileiro Cláudio, um homem de >40 anos de idade cuja cabeça é rotacionada para trás quase 180°. Os resultados do estudo sugerem que a nossa espécie é altamente eficiente no reconhecimento de rostos virados para cima - em contraste com rostos virados para baixo - por causa de uma combinação de experiência e fatores evolucionários.
(1) Leitura recomendada: Por que nosso cérebro vê rostos e expressões faciais em todo lugar?
"Quase todo mundo possui muito mais experiência com rostos virados para cima e ancestrais cuja reprodução era influenciada pela habilidade de processar rostos, portanto não é fácil a separação entre influência da experiência e mecanismos frutos de evolução durante a análise de típicos voluntários," disse em entrevista o autor principal do novo estudo, Dr. Brad Duchaine, um psicólogo da Dartmouth College, EUA (Ref.2). "No entanto, devido à orientação reversa da cabeça de Cláudio, ele fornece uma oportunidade de examinar o que acontece quando os rostos são observados na maioria das vezes em uma orientação diferente daquele comumente observada."
Humanos modernos (Homo sapiens) adultos são altamente habilidosos na percepção de rostos orientados para cima, ou seja, testa/cabelo no topo e queixo na parte de baixo. Nossa atenção é rapidamente atraída para rostos nessa orientação e podemos instantaneamente reconhecer familiaridade e notar mudanças sutis nas expressões faciais. Nossa proficiência com rostos virados para cima é especialmente aparente quando a percepção facial para essa orientação é colocada em contraste com a percepção de rostos invertidos. Quando rostos são rotacionados 180° (virados para baixo) no plano da foto, performance em uma ampla variedade de tarefas envolvendo processamento facial é substancialmente ou, em alguns casos, dramaticamente reduzida. Essa queda de performance é conhecida como efeito da inversão de face, e é o mais fundamental efeito na percepção facial.
Mas quais os fatores de desenvolvimento que produzem a performance superior com rostos virados para cima nos adultos? É devido simplesmente à exposição fortemente prevalente dessa orientação facial ao longo de muitos anos na população em geral? Seria devido a mecanismos neurais fixados via seleção natural ao longo da nossa evolução? Ou seria devido a ambos os fatores agindo em conjunto?
Trabalhos científicos prévios investigando a questão têm gerado resultados inconclusivos. Evidência para mecanismos evolutivos de especialização vem de estudos demonstrando que recém-nascidos prestam maior atenção em rostos virados para cima do que rostos invertidos, assim como aparente melhor processamento de características faciais e certas respostas neurais mais acentuadas para essa orientação facial. Porém, análise de recém-nascidos é ainda muito limitada porque bebês também, no geral, passam a maior parte do tempo observando rostos virados para cima desde o nascimento - e esse padrão persiste ao longo do desenvolvimento até a fase adulta. Portanto, seleção de voluntários adequados, protocolos de treino e metodologia para esse tipo de análise científica são muito difíceis e limitados.
Cláudio Vieira de Oliveira é morador de Monte Santo, sertão da Bahia, e nasceu com uma condição chamada de artrogripose múltipla congênita, na qual a amplitude de movimento de múltiplas articulações é restrita. No caso de Cláudio, juntas nas suas pernas, braços e pescoço possuem posições permanentemente fixadas, e exibe pernas atrofiadas, os braços colados no peitoral e a cabeça virada para trás, sustentada pelas costas (Fig.1). Quando Cláudio nasceu, os médicos disseram aos pais que não havia nada que poderia ser feito e que ele não sobreviveria - chegaram inclusive a dar um máximo de 24 horas de vida (Ref.3). Os pais de Cláudio não desistiram do filho e, apesar dos grandes desafios, ele levou uma vida bastante inspiradora e cheia de realizações pessoais.
Cláudio começou a andar sobre os seus joelhos aos 8 anos de idade. Sua mãe o ensinou a ler, e ele escreve segurando uma caneta na sua boca e usa um ponteiro na boca para digitar. Completou o ensino escolar e se formou em contabilidade em uma universidade distante 4 horas da sua cidade natal. Trabalha hoje como um contador fiscal, é famoso por realizar discursos motivacionais, escreveu uma autobiografia e possui um grande número de seguidores nas redes sociais. Apesar de ter a cabeça para baixo, Cláudio garante que consegue enxergar tudo normal e que não tem dificuldade em comer, beber ou respirar.
A anatomia única de Cláudio representa uma rara oportunidade para a investigação científica da percepção facial em humanos, já que ele, a princípio, passou a maior parte da vida observando rostos invertidos como visão mais comum.
No novo estudo, os pesquisadores conduziram uma série de testes em Cláudio e outros voluntários (grupo de controle) em 2015 e em 2019, envolvendo avaliação das habilidades de detecção e de identificação [matching de identidade] faciais, assim como testes associados ao "Efeito Thatcher". Ao longo dos três tipos de testes, pessoas com típica percepção facial são muito melhores nesses julgamentos quando os rostos estão virados para cima do que quando invertidos. Entre os participantes do estudo (22 no total, incluindo 14 homens e 8 mulheres), estavam a irmã de Cláudio e uma vizinha.
Os resultados dos testes, surpreendentemente, mostraram que Cláudio possuía quase idêntica acuracidade de detecção tanto para rostos invertidos quanto para rostos virados para cima. Para testes envolvendo matching de identidade (ex.: identificação de personalidades famosas), Cláudio mostrou uma leve maior acuracidade com rostos invertidos do que rostos virados para cima. A similaridade de de performance de Cláudio para ambas as orientações faciais suportaram a hipótese de que humanos são altamente habilidosos para a identificação de rostos virados para cima por causa de fatores biológicos [evolução] e de experiência [massiva exposição a essa orientação facial ao longo da vida].
Outra surpresa foi o fato de Cláudio mostrar uma performance significativamente superior (quase 17% melhor) quando rostos manipulados com efeito Thatcher eram apresentados com orientação para cima. Os pesquisadores não souberam explicar o fenômeno, mas sugeriram que o efeito Thatcher emerge a partir de mecanismos visuais distintos daqueles associados à detecção facial e ao matching de identidade - e que esses mecanismos podem ter trajetórias diferentes de desenvolvimento.
REFERÊNCIAS
- Duchaine et al. (2023). The development of upright face perception depends on evolved orientation-specific mechanisms and experience. https://doi.org/10.1016/j.isci.2023.107763
- https://www.eurekalert.org/news-releases/1001601
- https://g1.globo.com/ba/bahia/g1-bahia-10-anos/noticia/2021/03/24/baiano-com-cabeca-virada-para-tras-relembra-momentos-da-vida-e-conta-sobre-como-tem-vivido-o-isolamento-social.ghtml
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4298288/