Alerta aos pais: colírio de atropina 0,01% não difere de placebo no tratamento [controle] de miopia infantil
Um estudo clínico duplo-cego, randomizado e placebo-controlado publicado no periódico JAMA Ophthalmology (Ref.1), envolvendo crianças em idade escolar nos EUA com baixa a moderada miopia (problema de visão a longa distância), investigou o uso de colírio de atropina - gotas administradas à noite com concentração de 0,01% - para tratamento dessa condição ocular. Os resultados do estudo mostraram que atropina 0,01%, comparado com placebo, não desacelerou a progressão da miopia ou alongamento axial. Os autores do estudo concluíram que o uso de colírio a base de atropina [baixa dose de 0,01%] não é cientificamente suportado para o controle de miopia em crianças.
A miopia é uma anormalidade oftalmológica bastante comum no cenário mundial, afetando mais de 50% da população de vários países industrializados. Ela ocorre quando a imagem de um objeto distante se forma anteriormente à retina, estando o músculo ciliar em repouso, mais comumente devido ao aumento do comprimento axial do olho. Com isso, há uma redução da visão à distância, exigindo correção refrativa por meio do uso de óculos, lentes de contato ou cirurgia a depender de cada caso.
A prevalência dessa condição ocular está aumentando ao redor do mundo, particularmente entre os adultos jovens. É previsto que até 2050, mais de 44 milhões de pessoas nos EUA irão desenvolver miopia. A manifestação da miopia ocorre tipicamente entre 7 e 16 anos de idade, com erro refrativo e aumento do comprimento axial até o início da fase adulta.
Dentre os fatores predisponentes, a genética é o principal. Contudo, devido ao significativo aumento da prevalência de miopia, os fatores ambientais, especialmente a grande pressão educacional e a redução das horas passadas ao ar livre, têm se tornado mais relevantes na sua patogênese. Por exemplo, crianças e jovens estão trocando o computador de mesa pelo smartphone ou tablets; as telas menores dos celulares fazem com que a maioria delas segure o equipamento muito próximo do globo ocular e, como consequência do esforço visual para perto tem-se a facilidade na perda do foco para longe (Ref.2).
De fato, "trabalho de perto" - definido como trabalho envolvendo proximidade dos olhos a um objeto que requer acomodação visual (ex.: leitura de papeis/telas ou uso de computador) - pode estar associado ao aumento no risco de miopia por favorecer o aumento do comprimento axial do olho (Ref.3). De modo semelhante, maior período de tempo utilizado para atividades ao ar livre, naqueles que vivem em ambientes altamente urbanizados, tem-se mostrado associado a comprimento axial mais curto e uma potencial intervenção no sentido de prevenir ou controlar a miopia (Ref.4).
Apesar de visão embaçada a distância devido a miopia ser passível de correção com uso de óculos, lentes de contato e cirurgia refrativa, essas intervenções não afetam o alongamento axial do olho. Maior comprimento axial é associado com um risco aumentado de problemas na visão associados a deslocamento retinal, degeneração macular miópica e neovascularização da coroide. Dadas essas potenciais complicações, vários tratamentos para controlar a miopia têm sido prescritos, incluindo atropina tópica, lentes de contato multifocais, ortoqueratologia à noite, lentes especializadas, intervenções cromáticas e, como já mencionado, aumento nas atividades ao ar livre. Recentemente, colírio a base de atropina a baixa dose têm sido usados para retardar a manifestação de miopia em algumas crianças.
Atropina é um alcaloide tropânico (1), uma substância com conhecido efeito de dilatação pupilar (2). Colírio com atropina a 0,5-1,0% é usado há décadas para reduzir a progressão da miopia. Apesar dessas concentrações parecerem efetivas, elas também estão associadas com fotofobia e embaçamento próximo, reduzindo a aceitação entre os pacientes. Estudos clínicos vinham sugerindo que colírios com concentrações bem mais baixas de atropina (0,01-0,05%) eram capazes de desacelerar a progressão de miopia infantil em até 50-60% e com relativamente poucos efeitos adversos e menor rebote miótico após cessação das aplicações.
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(1) Leitura recomendada: Existe suporte científico e histórico para o unguento de voo das bruxas?
(2) Os exatos mecanismos de ação da atropina para o controle da miopia não são totalmente esclarecidos. A atropina pode agir diretamente sobre a esclera (branco dos olhos) e talvez inibir a produção de glicosaminoglicano e, consequentemente, o crescimento dos olhos. Parece também aumentar a espessura da coroide em crianças. O exato mecanismo pode incluir uma combinação de efeitos. No geral, atropina exerce ação direta sobre células amácrinas da retina e nos níveis de dopamina. Ref.5
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Nesse sentido, nos últimos anos, muitos oftalmologistas pediátricos começaram a prescrever colírios com baixa dose de atropina, comumente na concentração de 0,01%.
No novo estudo, pesquisadores resolveram testar a eficácia de colírio com atropina 0,01% para controle da miopia. Um total de 187 crianças de 5 a 12 anos de idade e com miopia leve a moderada foram recrutadas nos EUA. Desse total, 125 foram aleatoriamente selecionadas para receber atropina 0,01% e 62 foram aleatoriamente selecionadas para receber placebo (aplicações durante a noite). O tratamento teve duração de 24 meses, seguido por 6 meses de acompanhamento. Após 30 meses, 118 crianças seguiram todo o percurso clínico programado.
As análises não revelaram nenhuma diferença significativa entre placebo e atropina na progressão da miopia ou no alongamento axial. Os resultados não suportaram uso de colírio de atropina 0,01% para o controle da miopia.
Segundo os autores do estudo, devido à robustez e alta qualidade das análises, além da alta retenção de participantes, é improvável que os resultados foram devido a viés ou simples chance. Ainda segundo os autores, estudos futuros sobre controle de miopia deveriam testar concentrações maiores de atropina ou outras estratégias ópticas e ambientais para reduzir a progressão da miopia, e, consequentemente, reduzir o risco de complicações como degeneração miópica macular adulta e deslocamento retinal.
REFERÊNCIAS
- Repka et al. (2023). Low-Dose 0.01% Atropine Eye Drops vs Placebo for Myopia Control, A Randomized Clinical Trial. JAMA Ophthalmology. https://doi.org/10.1001/jamaophthalmol.2023.2855
- Gomes et al. (2020). Miopia causada pelo uso de telas de aparelhos eletrônicos: uma revisão de literatura. Revista Brasileira de Oftalmologia, 79(5). https://doi.org/10.5935/0034-7280.20200077
- Dutheil et al. (2023). Myopia and Near Work: A Systematic Review and Meta-Analysis. Environmental Research and Public Health 20(1), 875. https://doi.org/10.3390/ijerph20010875
- Zhu et al. (2023). Interventions recommended for myopia prevention and control among children and adolescents in China: a systematic review. British Journal of Ophthalmology, Volume 107, Issue 2. http://dx.doi.org/10.1136/bjophthalmol-2021-319306
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9522992/