Últimas Notícias

[5]

Mulher condenada e presa pela morte dos seus quatro filhos foi perdoada após a Justiça ouvir a Ciência

Na foto, Kathleen Folbigg, durante inquérito em 2019.

 
Uma investigação científica independente em um inquérito judicial Australiano trouxe evidências que levaram ao perdão e liberdade de uma mulher enviada à prisão 20 anos atrás. Kathleen Folbigg, presa em 2003 pela morte dos seus quatro filhos pequenos, foi libertada ontem, dia 5 de junho, após o inquérito concluir que existia "dúvida razoável sobre a culpa da Sra. Folbigg para cada uma das ofensas para a qual ela foi originalmente julgada". Cientistas envolvidos no inquérito estão agora pedindo por reforma legal na Justiça da Austrália para que a ciência moderna tenha mais voz nos casos julgados.


- Continua após o anúncio -


"Ciência foi ouvida nesse caso," disse Michael Toft Overgaard, um cientista de proteína da Universidade de Aalborg, Dinamarca, que foi uma testemunha especialista no inquérito, em entrevista para a Nature (Ref.1). "Todo o caso tem sido um tanto surreal para nós como cientistas atuantes."


CASO JULGADO


Ao redor da hora do almoço, em março de 1999, Kathleen Folbigg foi checar sua filha de 18 meses de idade que estava dormindo e a encontrou pálida e irresponsiva. Folbigg, sozinha em sua casa em Singleton, Austrália, chamou uma ambulância enquanto ela tentava de tudo para ressuscitar sua filha. "Meu bebê não está respirando," ela disse em desespero, pedindo pressa aos profissionais de saúde.


"Eu já tive três casos de SUID," explicou ela na ocasião, referindo à síndrome da morte súbita infantil inesperada - um fenômeno largamente inexplicável que tipicamente afeta bebês no primeiro ano de vida enquanto dormem (apesar de fatores de risco modificáveis já estabelecidos e causas biológicas fortemente suspeitas) (1). Ao longo de um período de 10 anos, cada um dos seus filhos - com idades variando de 19 dias a 18 meses - morreram subitamente e de forma inexplicável durante o período de sono.


(1) Para mais informações: Qual a posição mais segura para o bebê dormir?


Ao redor de 9 p.m. na noite do mesmo dia, o patologista Allan Cala conduziu uma autópsia no bebê, no Instituto de Medicina Forense de New South Wales, em Glebe, um subúrbio de Sydney. Na autópsia, Cala não notou nenhuma evidência de lesão e nenhum medicamento, droga ou álcool no sistema do bebê falecido. Ele mencionou certa inflamação no coração, possivelmente causada por um vírus, mas resumiu que tal achado pode ter sido incidental. Ao invés disso, Cala opinou que era improvável as quatro crianças na mesma família terem morrido de SUID. "A possibilidade de homicídios múltiplos nessa família não foi excluída," trazia o relatório da análise forense.


------------

> Diagnósticos na época de cada uma das quatro mortes: O primeiro filho de Folbigg morreu com 19 dias de idade, e foi diagnosticado com 'laringomalácia'*. O segundo filho morreu aos 8 meses com asfixia devido a obstrução das vias aéreas ligada a um quadro epiléptico derivado de uma desordem encefalopática de causa desconhecida e associada com cegueira. A primeira filha morreu aos 10 meses de idade, quatro dias após ver um médico geral por causa de um quadro de tosse por crupe (inflamação da laringe) e colocada sob antibióticos (flucloxacilina); achados da autópsia incluíam uma úvula congestionada e hemorrágica, e infecção bacteriana (Streptococcus) nos pulmões. A segunda filha morreu aos 18 meses de idade, dois dias após ser tratada com paracetamol e pseudoefedrina por causa de uma infecção respiratória; autópsia revelou miocardite e infecção bacteriana no baço (Streptococcus e Staphylococcus aureus). 


*Laringomalácia é uma anomalia congênita da cartilagem da laringe que predispõe ao colapso supraglótico dinâmico durante a fase inspiratória da respiração, resultando em obstrução intermitente das vias aéreas superiores e estridor.

------------


Nesse caminho, quatro anos depois, em maio de 2003, um júri concluiu que Folbigg era culpada de assassinar três dos seus filhos - Patrick, Sarah e Laura - e de homicídio casual no caso do seu primeiro filho, Caleb. Como não havia sinais físicos de crime em quaisquer das mortes, o caso foi baseado inteiramente em evidência circunstancial, incluindo improbabilidade natural das quatro mortes inexplicáveis ocorrendo na casa da acusada. "Um raio não atinge a mesma pessoa quatro vezes, o procurador disse ao júri." Esse último comentário ecoou a "regra" defendida pelo pediatra Dr. Roy Meadow, em uma série de casos na década de 1990 e no início da década de 2000 de mães Britânicas acusadas de infanticídio: "uma morte súbita infantil é uma tragédia, duas é suspeito e três é assassinato, até que se prove o contrário." Apesar do testemunho de autoridade de Meadow, a maioria das acusações foram derrubadas no Reino Unido e essa "regra" tem sido desde então considerada uma falácia.


- Continua após o anúncio -


Independentemente das controvérsias, Folbigg foi sentenciada a 40 anos de prisão, e cumpriu 19 anos da sentença até ganhar liberdade esta semana. Folbigg chegou a ser conhecida pelo público como a "pior assassina em série da Austrália".


MUTAÇÕES GENÉTICAS


Em 2018, um grupo de cientistas começou a reunir evidência sugerindo outra possibilidade para as mortes das crianças e inocência de Folbigg, abrindo novamente o caso.


Evidência genética não disponível na época da condenação de Folbigg revelou que raras mutações na proteína calmodulina pode ter causado as mortes das suas duas filhas, e uma desordem neurogenética pode ter levado à morte de um dos seus filhos. A calmodulina controla a concentração de cálcio nas células, e entre outras ações ajuda a regular as contrações do coração. No caso dos dois filhos do sexo masculino, estes carregavam raras variantes missense bialélicas no gene BSN; aliás, deleção nesse gene está associados com a manifestação epilética letal em roedores.


Carola Vinuesa, no Instituto Francis Crick, em Londres, foi procurada pelos advogados de Folbigg em 2018 para sequenciar o genoma de Folbigg e dos seus filhos para ver se existia uma explicação genética para as mortes súbitas testemunhadas. Vinuesa identificou mutações em um gene chamado calmodulina 2 (CALM2) no genoma de Folbigg - variante CALM2 G114R -, assim como nas suas duas filhas falecidas (herança materna), potencialmente explicando a morte dessas últimas. Mas a evidência não foi suficiente para convencer o comissionário do primeiro inquérito. Então, em 2019, Vinuesa entrou em contato com a Academia Australiana de Ciência, reunindo suporte para uma petição ao governador do estado Australiano de New South Wales, buscando fornecer perdão à Folbigg. Esse perdão seria baseado em subsequente investigação científica conduzida por Overgaard e outros colaboradores mostrando que as mutações prejudicam a função proteica.


Nesse ponto, todas as outras avenidas legais tinham sido exauridas. O governador ordenou um novo inquérito, e seu comissionário, um ex-chefe de Justiça de estado, Thomas Bathurst, apontou a academia de ciência a agir como uma conselheira científica. 


Nesse papel, a academia recomendou testemunhas especialistas e aconselhou sobre o escopo de especialidade de cada testemunha. A academia encaminhou cerca de 30 pesquisadores, metade dos quais apresentaram evidência ao inquérito. Outros especialistas foram também chamados para os times da procuradoria e da defensoria. A presidenta da academia, Anna-Maria Arabia, disse que o inquérito ouviu "o estado-da-arte da ciência dos mais qualificados cientistas, seja onde for que estivessem no mundo". Segundo Arabia, as testemunhas especialistas eram independentes em relação tanto à procuradoria quanto à defensoria, e estavam disponíveis para todas as partes interrogarem.


Peter Schwartz, um cardiologista no Instituto Auxological em Milão, Itália, e um pesquisador de referência mundial em mutações da calmodulina que causam morte súbita, foi uma dessas testemunhas. Schwartz já tinha aconselhado em quase 40 casos médico-legais, a maioria nos EUA, e ajudou a assegurar sólido suporte científico às evidências apresentadas no inquérito. Aliás, em um estudo publicado em 2021 no periódico EP Europace (Ref.3), pesquisadores mostraram que a variante CALM2 G114R prejudica a habilidade da proteína calmodulina de ligar íon cálcio (Ca2+) e regular dois críticos canais de cálcio (CaV1.2 e RyR2) envolvidos na atividade de contração cardíaca. Os efeitos deletérios dessa variante mostraram-se similares a duas variantes previamente descritas em genes também responsáveis pela síntese da calmodulina e associadas a mortes súbitas infantis (!).


-----------

(!) Três genes (CALM1-3) codificam proteínas calmodulinas idênticas. Uma variante no resíduo correspondente do gene CALM3 (G114W) está ligado em especial a um caso recente de uma criança de 4 anos de idade que morreu subitamente e um irmão que sofreu um infarto cardíaco aos 5 anos de idade. Febre e infecções podem ser um potencial gatilho para perigosas arritmias cardíacas e morte súbita em crianças com essas mutações, e infecções bacterianas pouco antes do falecimento das duas filhas de Folbigg foram apontadas na autópsia e histórico médico.

-----------


Considerável tempo foi dado para os advogados entenderem as evidências científicas e, em uma ocasião, Overgaard comentou que gastou mais de 5 horas explicando como mutações na proteína calmodulina eram capazes de trazer prejuízos à sua função. 


- Continua após o anúncio -


Segundo especialistas, o caso demonstra como ciência e sistema judiciário podem trabalhar juntos, e justifica uma reforma na lei para criar um "sistema legal ciência-sensitivo". Uma proposta é o estabelecimento de uma comissão para revisão de caso criminal - similar ao existente hoje no Reino Unido -, com o poder de revisar casos quando existirem avanços na ciência de interesse e novas evidências sejam reveladas. 


REFERÊNCIA

  1. https://www.nature.com/articles/d41586-023-01871-8
  2. https://www.nature.com/articles/d41586-022-03577-9 
  3. Brohus et al. (2021). Infanticide vs. inherited cardiac arrhythmias. EP Europace, Volume 23, Issue 3, Pages 441–450. https://doi.org/10.1093/europace/euaa272

Mulher condenada e presa pela morte dos seus quatro filhos foi perdoada após a Justiça ouvir a Ciência Mulher condenada e presa pela morte dos seus quatro filhos foi perdoada após a Justiça ouvir a Ciência Reviewed by Saber Atualizado on junho 06, 2023 Rating: 5

Sora Templates

Image Link [https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj7dwrZL7URox7eZPHqW_H8cjkOrjUcnpGXhHZSPAyMnMt0dLbkVi4YqVX6dXge3H1c9sQI_fitw0t1gJqKshvDxl3iD3e-rz9gsLnpfFz8PlkOVhr686pJCWfAqnTPN3rkOgXnZkzhxF0/s320/globo2preto+fundo+branco+almost+4.png] Author Name [Saber Atualizado] Author Description [Porque o mundo só segue em frente se estiver atualizado!] Twitter Username [JeanRealizes] Facebook Username [saberatualizado] GPlus Username [+jeanjuan] Pinterest Username [You username Here] Instagram Username [jeanoliveirafit]