Mais antigo registro conhecido de beijo romântico entre humanos ocorreu na Mesopotâmia, há 4500 anos
Figura 1. Modelo de barro Babilônio mostrando um casal nu engajando em sexo e beijo, datado em 1800 a.C. Foto: © The Trustees of the British Museum |
Beijo romântico boca-com-boca é um comportamento comum em mais de 90% das culturas humanas conhecidas. Estudos recentes têm apontado que o primeiro registro conhecido de beijo romântico/sexual vem de um manuscrito da Idade do Bronze com origem do Sul da Ásia (Índia), e datado do ano de 1500 a.C., ou seja, há pouco mais de 3500 anos. A partir dessa região e período, é sugerido que o comportamento tenha se espalhado para outras regiões, simultaneamente acelerando a disseminação do vírus herpes simples 1 (HSV-1). Agora, em um artigo publicado no periódico Science (Ref.1), dois pesquisadores da Universidade de Copenhagen, Dinamarca, e da Universidade de Oxford, Reino Unido, analisaram uma série de fontes escritas de antigas sociedades Mesopotâmicas e concluíram que o beijo romântico já era uma prática estabelecida há pelo menos 4500 anos no Oriente Médio - e provavelmente é bem mais antiga.
No meio acadêmico, dois tipos de beijos são geralmente diferenciados: beijo parental-amigável e beijo romântico-sexual. Enquanto o beijo amigável-parental (ex.: beijo no rosto como sinal de afeição) parece ser unânime entre humanos ao longo do tempo, culturas e geografia, beijo romântico ou em um contexto sexual não é culturalmente universal e é dominante em sociedades estratificadas. Nas poucas sociedades onde contato boca-com-boca entre parceiros é desconhecido ou evitado, parceiros sexuais têm sido observados de praticar tradições análogas a um beijo romântico, particularmente contato próximo rosto-com-rosto envolvendo fungadas, lambidas ou esfregadas.
Segundo o novo artigo publicado na Science, os mais antigos beijos românticos registrados ocorrem em fontes do antigo Oriente Médio, sendo atestados em antigos textos Mesopotâmicos de 2500 a.C. em diante. A Antiga Mesopotâmia constituiu as áreas ao longo dos rios Eufrates e Tigre, as quais hoje cobrem aproximadamente o Iraque e a Síria. Escrita foi primeiro inventada simultaneamente no sul do Iraque e no Egito ao redor de 3200 a.C. Na Mesopotâmia, pessoas escreviam em manuscritos cuneiformes sobre placas de barro, os quais primeiro registraram as linguagens Sumérias e Acadianas de ~3200 a.C até 75 d.C. Nos mais antigos textos na linguagem Suméria, beijo era descrito em relação a atos eróticos, possivelmente como atividade pós-coito, e a ação ocorria nos lábios. Na linguagem Acadiana, referências ao beijo eram descritas de duas formas: afeição familiar ou de amizade, descrevendo uma sinalização de submissão ou respeito através do ato de beijar os pés ou o chão, e ação erótica envolvendo primariamente os lábios.
Entre os milhares de textos cuneiformes referenciados pelos autores do artigo, existem claros exemplos ilustrando que o beijo era considerado uma parte comum da intimidade romântica na antiguidade. Esses textos sugerem que o beijo era algo que parceiros casados faziam, e também era considerado parte do desejo sexual de uma pessoa apaixonada. Dois textos de ~1800 a.C. descreviam como uma mulher casada foi quase levada à perdição por um beijo dado por outro homem, e o caso de uma mulher solteira que jurou não beijar e ter relações sexuais com um homem específico. Aparentemente, a sociedade Mesopotâmica tentava regular tais atividades entre pessoas solteiras ou adúlteras. Além disso, o aspecto sexual do beijo era evitado em público, e existia a crença que beijar uma pessoa que não era para estar sexualmente ativa, como uma sacerdotisa, arrancava a habilidade do 'beijador' de falar.
Beijo, além de um sinal de afeição entre amigos ou pais e filhos, era também usado em contextos ritualísticos, onde a pessoa precisando de uma restauração divina podia beijar uma pessoa em estado de transe, uma mulher velha, ou uma mulher escrava.
As fontes da antiga Mesopotâmia sugerem que o beijo no contexto sexual, familiar e de amizade era uma parte comum do cotidiano em regiões centrais do antigo Oriente Médio a partir do final do 3° milênio a.C. No mesmo sentido, o beijo romântico não parece ter se originado de forma exclusiva em uma única região e se espalhado culturalmente de lá. Somando-se a isso, as fontes da Mesopotâmia mostram que o beijo romântico era conhecido há muito mais tempo, e em uma área geográfica mais ampla, do que as referências à Índia de ~1500 a.C.
O beijo romântico parece ter sido praticado em múltiplas culturas antigas ao longo de vários milênios, e talvez seja um comportamento intrínseco da nossa espécie (Homo sapiens), atuando crucialmente na transmissão de doenças (ex.: HSV-1) e interferindo na composição da microbiota oral durante a troca de saliva.
Aliás, em antigos textos médicos da Mesopotâmia, existe a descrição de uma doença chamada de bu’šānu que parece refletir infecção por HSV-1 - em adição a outras doenças modernas, como difteria. A doença era localizada primariamente na ou ao redor da boca e faringe, e o termo 'bu’šānu' pode ser potencialmente interpretado como "vesícula". Vesículas na ou ao redor da boca são um dos principais sintomas de infecção por HSV-1.
EVOLUÇÃO DO BEIJO
Considerando o beijo romântico como um traço biológico dos humanos modernos, e não uma simples construção cultural recente na nossa história, existem várias hipóteses sobre a evolução dessa prática na nossa espécie (ou em ancestrais). É sugerido que o beijo romântico - envolvendo contato boca-com-boca e troca de saliva - evoluiu como uma forma de:
- avaliar potenciais parceiros através de pistas químicas comunicadas na saliva ou ar expirado;
- mediar e fortalecer sentimentos de ligação amorosa entre parceiros sexuais (uma sinalização honesta de comprometimento amoroso);
- facilitar excitamento sexual e, portanto, promover relações sexuais (aumentando a chance de que um encontro amoroso em particular resultará em coito).
Considerando função em rituais de acasalamento e de facilitar a manutenção de laços de longo prazo entre parceiros sexuais, o beijo romântico está associado com um significativo custo: transmissão de doenças (1). Nesse sentido, humanos tipicamente não engajam em beijo romântico de forma indiscriminada, exceto se o custo do beijo seja compensado com um parceiro de 'alta qualidade'.
Uma curiosa hipótese descrita em 2010 no periódico Medical Hypotheses (Ref.6) sugeriu que o beijo romântico evoluiu como uma adaptação evolucionária para proteger contra teratogênese causada pelo citomegalovírus humano (CMV). O CMV é um vírus de DNA do grupo herpes que causa latência após a infecção primária e pode reativar a replicação nas situações de redução da vigilância imunológica. Infecção por esse vírus é altamente prevalente na população humana e carrega um severo risco teratogênico (2) se infecção primária é adquirida durante certos períodos críticos. O vírus está presente nas células epiteliais da glândula salivar e é espalhado por lesões de periodontite. A hipótese sugere que fêmeas escolhem períodos oportunos para se infectarem com o CMV através do beijo com o potencial parceiro - e longe do período de gravidez.
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(1) Aliás, sugestão de leitura: Beijo de língua pode transmitir gonorreia?
(2) Define-se como agente teratogênico qualquer substância, organismo, agente físico ou estado de deficiência, que estando presente durante a vida embrionária ou fetal, produz alteração na estrutura ou função da descendência (ex.: anomalias genéticas).
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O CMV possui é capaz de causar sérios efeitos teratogênicos caso a grávida seja infectada. Entre 0,5% e 2,5% dos fetos se tornam infectados se existe um histórico materno de infecção antes da gravidez, aumentando para até 50% se a mulher está grávida quando uma infecção primária ocorre. Neonatais que não são mortos pelo vírus, o qual pode causar uma taxa de mortalidade tão alta quanto 30%, podem exibir altos níveis de hepatomegalia, , esplenomegalia, microcefalia, retardo mental, paralisia cerebral, deficiências motoras e convulsões. Os riscos para o feto, portanto, são muito severos, com o maior risco associado com infecção primária no primeiro trimestre de gravidez.
O CMV é prontamente transmitido via saliva, urina e sêmen. Nesse sentido, quando a fêmea troca saliva com o potencial parceiro sexual bem antes da relação sexual com coito - através do beijo romântico -, as chances de potencial infecção primária com o vírus na gravidez ou período muito próximo da gravidez são significativamente reduzidas. A transmissão é ainda mais efetiva de macho para fêmea através do beijo por causa da típica diferença de altura entre os sexos: como os machos da nossa espécie são mais altos, o fluxo de saliva é no sentido da boca da fêmea mais baixa.
É interessante apontar que o beijo é também observado em outras espécies de animais, como beijo boca-com-boca com um propósito romântico-sexual em bonobos (Pan paniscus) e beijo platônico como mediador de relações sociais em chimpanzés-comuns (Pan troglodytes) - apesar desses beijos não implicarem em troca de saliva e contato entre línguas. Essas duas espécies representam os mais próximos parentes evolutivos dos humanos modernos ainda vivos, e a prática de beijo nesses primatas sugere a evolução desse comportamento em ancestrais humanos.
REFERÊNCIAS
- Arbøll & Rasmussen (2023). The ancient history of kissing. Science, Volume 380, Issue 6646, pp. 688-690. https://doi.org/10.1126/science.adf0512
- https://www.britishmuseum.org/collection/object/H_1958-1007-1
- Wlodarski & Dunbar (2013). Examining the Possible Functions of Kissing in Romantic Relationships. Archives of Sexual Behavior, 42(8), 1415–1423. https://doi.org/10.1007/s10508-013-0190-1
- Watkins et al. (2019). National income inequality predicts cultural variation in mouth to mouth kissing. Scientific Reports 9, 6698. https://doi.org/10.1038/s41598-019-43267-7
- Wright, J. T. (2022). "What’s in a kiss?" JADA, Volume 153, Issue 6, P493-494. https://doi.org/10.1016/j.adaj.2022.04.004
- Hendrie & Brewer (2010). Kissing as an evolutionary adaptation to protect against Human Cytomegalovirus-like teratogenesis. Medical Hypotheses, 74(2), 222–224. https://doi.org/10.1016/j.mehy.2009.09.033