Cientistas finalmente descobriram um antídoto efetivo para o fungo mais venenoso do mundo
Figura 1. Cogumelos da espécie Amanita phalloides. |
O cogumelo da espécie Amanita phalloides, popularmente conhecido aqui no Brasil como cicuta verde, chapéu-da-morte ou rebenta-bois, é um fungo altamente venenoso e responsável por 90% das mortes causadas pela ingestão de cogumelos ao redor do mundo. O componente mais fatal desse cogumelo é o composto α-amanitina. Porém, os mecanismos exatos de como essa toxina envenena humanos permaneciam pouco esclarecidos, impedindo o desenvolvimento de antídotos específicos e efetivos. Agora, em um estudo publicado na Nature Communications (Ref.1), pesquisadores conseguiram identificar uma enzima no corpo humano necessária para a toxicidade da α-amanitina, e mostraram que uma substância chamada de indocianina verde é capaz de interromper o caminho enzimático associado ao envenenamento.
"Isso é fantástico," disse o Dr. Helge Bode, um químico de produtos naturais do Instituto Max Planck para Microbiologia Terrestre em Marburg, Alemanha, comentando sobre o estudo (Ref.2). "A α-amanitina realmente é um dos compostos mais perigosos que nós temos na natureza."
Envenenamento por cogumelos é a principal causa de mortalidade em casos de intoxicação alimentar ao redor do mundo. Um total de >10 mil eventos de exposição a cogumelos tóxicos, resultando em quase 39 mil envenenamentos e quase 800 mortes foram reportadas na China entre 2010 e 2020. Entre todos os cogumelos venenosos, o chapéu-da-morte (A. phalloides) é o mais perigoso, e intoxicação com essa espécie é comumente associada com péssimo prognóstico, principalmente devido a irreparável falha aguda do fígado ou rins. O quadro clínico pode variar de uma apresentação subclínica leve até um fulminante curso letal. Essa espécie é um fungo basidiomiceto nativo da Europa, cujo gênero (Amanitta) engloba várias outras espécies muito tóxicas responsáveis pelos casos mais severos de envenenamento por macrofungos na Europa e na América do Norte (Fig.2).
A espécie A. phalloides produz dois tipos de toxinas que causam a síndrome faloidea: amatoxinas e falotoxinas. Em humanos, falotoxinas exercem uma influência direta sobre o citoesqueleto, portanto causando uma síndrome entérica leve e transiente dentro de 6-24 horas a partir da ingestão. Porém, mesmo com as falotoxinas sendo altamente tóxicas para as células hepáticas, toxicidade no fígado por essa toxina é prevenida por essa não ser absorvida pelo intestino. Nesse sentido, a maior preocupação são as amatoxinas (particularmente a α-amanitina, mas com alguma contribuição da β-amanitina), as quais inibem a RNA polimerase II nos hepatócitos. Prejuízos na atividade sintética e a perda de proteínas estruturais causam necrose associada aos hepatócitos, estresse oxidativo e apoptose, os quais se manifestam como severa, frequentemente fatal, falha aguda hepática.
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> Importante realçar que envenenamento por amatoxinas é causado por espécies de cogumelos pertencentes a três gêneros: Amanita, Galerina e Lepiota (Ref.4). Porém, a maioria das fatalidades são atribuídas à espécie A. phalloides. Em particular, as amanitinas não são destruídas através de cozimento e podem estar ainda presentes nos cogumelos após longos períodos de armazenamento em ambiente frio. A dose letal é muito baixa: tão pouco quanto 0,1 mg/kg de massa corporal pode ser letal em adultos e essa quantidade pode ser absorvida mesmo com a ingestão de um único cogumelo. As amanitinas são absorvidas através do epitélio intestinal e afetam primariamente o fígado, à medida que é o primeiro órgão encontrado após absorção no trato gastrointestinal.
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Falha renal e anúria são inicialmente o resultado de desidratação, mas subsequentemente dano renal pode ser a expressão de toxicidade direta pela α-amanitina nas células tubulares proximais.
Figura 4. Estrutura química da α-amanitina. |
No geral, é reportada uma taxa de mortalidade de 50% em adultos e de 33% em crianças após ingestão do cogumelo A. phalloides (Ref.5). Terapias tradicionais são frequentemente limitadas a descontaminação inespecífica de toxinas junto com suporte hospitalar básico. Nas últimas décadas, vários medicamentos clínicos, incluindo silibina e penicilina, têm mostrado potente eficácia terapêutica contra envenenamento por amatoxinas, apesar dos mecanismos exatos da ação medicamentosa permaneceram desconhecidos (Ref.6). Já foi reportado também que a polimixina B é capaz de bloquear a toxicidade de α-amanitina em ratos. Porém, antídotos específicos visando proteínas específicas diretamente associadas com o envenenamento pela α-amanitinas têm permanecido elusivos.
No novo estudo, conduzido por pesquisadores da Universidade de Sun Yat-sen, em Guangzhou, China, a ferramenta de edição genética CRISPR-Cas9 foi usada para criar um vasto inventário de células humanas com diferentes mutações de perda de função em diferentes genes. Os pesquisadores, então, testaram quais mutações ajudaram as células a sobreviverem à exposição à α-amanitina. Essa mesma estratégia foi usada há poucos anos para encontrar um antídoto efetivo contra a vespa-do-mar Australiana (Chironex fleckeri) (1).
(1) Leitura recomendada: Descoberto antídoto para um dos animais mais peçonhentos da Terra
As análises revelaram centenas de genes associados com a toxicidade da α-amanitina e, em específico, que células com ausência de uma versão funcional da enzima STT3B eram capazes de sobreviver à exposição à α-amanitina. Essa enzima faz parte de um caminho bioquímico que adiciona moléculas de açúcares em proteínas, e é responsável em particular por catalisar a biossíntese de N-glicanos - mostrados estar diretamente envolvidos na morte celular α-amanitina-induzida. Interrupção desse caminho de alguma forma bloqueou a α-amanitina de entrar nas células, prevenindo a destruição celular causada por essa toxina. Até o momento, ninguém nunca havia levantado suspeita sobre a enzima STT3B.
Na segunda etapa do estudo, os pesquisadores investigaram uma lista com 3201 moléculas aprovadas pela Agência de Drogas e Alimentos dos EUA (FDA), buscando potenciais inibidores da enzima STT3B. Eles identificaram um corante - chamado indocianina verde - usado desde 1956 em análises médicas para realçar, por exemplo, vasos sanguíneos no olho (angiografia ocular) e fluxo sanguíneo no fígado. Esse corante pode ser rapidamente clareado pelos hepatócitos e não possui óbvios efeitos colaterais a uma dose padrão de 0,5 mg/kg, ou seja, seguro para uso terapêutico.
Testes in vitro com células e organoides hepáticos mostraram que a indocianina verde era, de fato, efetiva em bloquear a toxicidade da α-amanitina. Em testes in vivo, usando ratos expostos à α-amanitina, os pesquisadores mostraram que injeção com o corante aumentava de forma robusta a chance de sobrevivência; apenas ~50% dos ratos tratados com indocianina verde morreram com envenenamento pela α-amanitina, comparado com 90% daqueles que não foram tratados.
Após injeção, a indocianina verde exibiu rápida distribuição por todo o corpo e concentrando-se principalmente no fígado após 2 horas, consistente com observações prévias de que esse corante é rapidamente clareado do plasma e seletivamente assimilado pelo fígado.
Importante observar que a indocianina verde perdeu seu efeito terapêutico contra a toxicidade por α-amanitina quando era administrada 8 e 12 horas após exposição à toxina. Isso pode ser por causa de provável dano irreversível infligido pela α-amanitina nas horas prévias. Isso sugere que a indocianina verde precisa ser administrada o mais rapidamente possível após ingestão do cogumelo tóxico. E isso pode ser problemático, já que a maioria das pessoas que comem cogumelos A. phalloides não se apresentam ao hospital até 24-48 horas depois da ingestão - já com um sério quadro clínico.
De qualquer forma, além de trazer uma potencial e importante nova via terapêutica contra envenenamento por A. phalloides - faltam ainda testes clínicos* em humanos para avaliar a real eficácia da indocianina verde na nossa espécie -, o achado do novo estudo abre as portas para o desenvolvimento de antídotos ainda mais eficazes.
*Obviamente testes clínicos não poderão envolver voluntários, e dependerão de pessoas que acidentalmente ingiram cogumelos tóxicos. Em outras palavras, pode demorar até que sólido suporte científico emerja comprovando eficácia da indocianina verde como antídoto em humanos.
REFERÊNCIAS
- Wang et al. (2023). Identification of indocyanine green as a STT3B inhibitor against mushroom α-amanitin cytotoxicity. Nature Communications 14, 2241. https://doi.org/10.1038/s41467-023-37714-3
- https://www.nature.com/articles/d41586-023-01630-9
- Alvarado, P. (2022). Amanita Section Phalloideae Species in the Mediterranean Basin: Destroying Angels Reviewed. Biology, 11(5), 770. https://doi.org/10.3390/biology11050770
- https://www.hindawi.com/journals/ijh/2012/487480/
- https://link.springer.com/article/10.1007/s40620-021-01018-w
- Dluholucký et al. (2022). Results of diagnostics and treatment of amanita phalloides poisoning in Slovakia (2004–2020). Toxicon, Volume 219, 106927. https://doi.org/10.1016/j.toxicon.2022.09.013