Um dos poucos animais nativos da Antártica está seriamente ameaçado pelo aquecimento global antropogênico
Em um estudo publicado em 2022 no periódico Functional Ecology (Ref.1), pesquisadores alertaram que o maior animal terrestre nativo da Antártica - e uma das únicas duas espécies conhecidas de insetos ainda vivos endêmicos do território Antártico - pode acabar sendo extinto em um futuro próximo devido ao processo de aquecimento global antropogênico.
A espécie em questão, Belgica antarctica, é um pequeno mosquito (ordem Diptera) com 2-6 milímetros de comprimento e que passa a maior parte do seu ciclo de vida como uma larva (quase 2 anos) - adultos sobrevivem por apenas 1-2 semanas após a emergência do verão. Muito bem adaptados às temperaturas extremamente baixas da Antártica (!), esse inseto possui um curioso mecanismo de proteção contra o frio extremo e persistente: deixa o corpo simplesmente congelar. Para prevenir danos de cristais de água se expandindo no interior dos tecidos e células, as larvas ao longo do inverno Antártico perdem até 70% dos fluídos corporais, passando cerca de 6 meses congeladas em um estado suspenso de vida chamado de diapausa. Na diapausa, as larvas não comem, não se movem e quase não fazem nada, mas conseguem sobreviver a temperaturas tão baixas quanto 20°C negativos. A grande resistência à desidratação também ajuda as larvas a suportarem o ar extremamente seco e a escassez de água líquida no ambiente Antártico (adultos são menos tolerantes à desidratação: no máximo, 32-34% de perda de água corporal).
Em experimentos realizados em laboratório, pesquisadores mostraram no novo estudo que um aumento realístico de 2°C nas temperaturas de inverno no microhabitat do B. antarctica reduziu de forma robusta a sobrevivência desse inseto e levou a perdas de energia armazenada no corpo. Corroborando estudos prévios, isso reforça que esses insetos extremófilos não apenas resistem ao frio intenso, como também dependem do frio intenso para sobreviverem.
Quiescência e Diapausa Obrigatória
O habitat do B. antartica é coberto por gelo e neve durante longos invernos (6-9 meses), e as larvas desse mosquito atravessam esse período a temperaturas muito baixas variando de 2°C negativos até 10°C negativos. Pupas e adultos emergem ao mesmo tempo, de forma sincrônica e pouco após o derretimento da neve. Fêmeas adultas depositam ovos imediatamente após o acasalamento.
Um estudo mais recente, publicado na Scientific Reports (Ref.6), revelou outro crítico mecanismo de adaptação do Belgica antarctica: passa por quiescência no primeiro ano e por diapausa obrigatória no segundo. Quiescência é uma forma de dormência e parada de desenvolvimento em resposta imediata a condições adversas; e quando as condições melhoram, o organismo se torna ativo novamente. Já a diapausa obrigatória é um período dormente naturalmente induzido e geneticamente determinado que é ativado em um momento específico e fixado no ciclo de vida de um organismo. Enquanto diapausa facultativa é comum em espécies habitando ambientes de clima temperado, diapausa obrigatória é um traço mais raro onde insetos não requerem pistas externas (ex.: variação de temperatura ambiente) para iniciar a parada de desenvolvimento porque representa um componente fixado no programa ontogenético.
Após eclosão do ovo, a larva de B. antartica geralmente cresce até o segundo estágio larval no primeiro inverno e passa por quiescência no sentido de estar pronta para voltar ao desenvolvimento a qualquer momento quando o ambiente se torna mais quente - provavelmente maximizando a exploração do curto verão Antártico. À medida que o segundo inverno se aproxima, a larva alcança o quarto e último estágio, mas não se transforma em pupa. Ao invés disso, entra em diapausa obrigatória para emergir como adulta quando o verão chega - junto com os outros indivíduos da espécie e independentemente de onde estão. Na fase adulta, a larva possui apenas alguns poucos dias de vida, com foco exclusivamente reprodutivo; fêmeas que falham em se acasalar nesse curto intervalo de tempo acabam morrendo antes da reprodução.
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Pupa de Belgica antarctica. Larvas desse inseto se alimentam de microrganismos, algas e matéria orgânica diversa oriunda de plantas e animais mortos. Barra de escala = 500 μm. Ref.4-6 |
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(A) Adultos macho e fêmea de Belgica antarctica copulando. Adultos vivem por apenas ~2 semanas, não possuem asas, não picam e não se alimentam. Fêmeas morrem pouco depois da deposição de uma massa de ovos. Um total de 40-50 ovos ficam suspensos em um gel proteico e higroscópico - como observado em (B) - que é secretado a partir de uma glândula acessória da fêmea. O gel também fornece nutrientes e proteção (térmica e contra desidratação) para as larvas que eclodem dos ovos. Ref.4 |
As duas estratégias adaptativas (quiescência e diapausa obrigatória) permitem programar com precisão janelas favoráveis de desenvolvimento e de reprodução em meio ao extremo clima da região.
> Erroneamente e frequentemente o B. antarctica é citado como o "único inseto da Antártica". Existem hoje duas espécies de insetos conhecidas que são nativas (ou endêmicas) da Antártica: o B. antarctica e o mosquito Parochlus steinenii. Único inseto alado nativo da Antártica, o P. steinenii é encontrado na região marítima da Antártica (nas Ilhas Shetland do Sul) e em regiões sub-Antárticas (áreas localizadas imediatamente ao norte da Antártica) e no sul da América do Sul. Já o B. antarctica é estritamente endêmico de regiões costeiras no oeste da Península Antártica e das Ilhas Shetland do Sul. Nesse sentido, o B. antarctica é o único inseto nativo do continente Antártico. Existem também duas espécies de insetos estabelecidas mas que não são nativas da fauna Antártica terrestre: Eretmoptera murphyi e Trichocera maculipennis.
> O genoma do B. antartica é um dos menores genomas conhecidos entre os insetos, com apenas 98-99 Mbp de tamanho genômico. É ainda incerto se essa característica genotípica é também uma adaptação ao ambiente extremo da Antártica.
> O B. antartica possui várias adaptações fisiológicas, metabólicas e comportamentais para a sobrevivência na Antártica, além do "truque" de 'desidratação e congelamento'. Por exemplo, para aproveitarem temperaturas mais amenas e estáveis, as larvas se enterram sob a neve, cuja cobertura isola esses insetos do ar extremamente frio.
(!) Com mais de 99,6% da sua área coberta em gelo e neve, a temperatura anual média da Antártica varia de -10°C na costa até -60°C nas partes mais elevadas do interior continental. A temperatura mais baixa já registrada na Antártica foi de -89,2°C na estação Vostok, em 21 de julho de 1983 (Ref.3).
REFERÊNCIAS
- Devlin et al. (2022). Simulated winter warming negatively impacts survival of Antarctica's only endemic insect. Functional Ecology, Volume 36, Issue 8, Pages 1949-1960. https://doi.org/10.1111/1365-2435.14089
- Gañan et al. (2021). Records of Parochlus steinenii in the Maritime Antarctic and sub-Antarctic regions. ZooKeys, 1011:63-73. https://doi.org/10.3897/zookeys.1011.56833
- https://www.antarctica.gov.au/about-antarctica/weather-and-climate/weather/
- Finch et al. (2020) Multi-level analysis of reproduction in an Antarctic midge identifies female and male accessory gland products that are altered by larval stress and impact progeny viability. Scientific Reports 10, 19791. https://doi.org/10.1038/s41598-020-76139-6
- Mejias et al. (2023). A polar insect's tale: Observations on the life cycle of Parochlus steinenii, the only winged midge native to Antarctica. Ecology, Volume 104, Issue 3, e3964. https://doi.org/10.1002/ecy.3964
- Yoshida et al. (2025). Obligate diapause and its termination shape the life-cycle seasonality of an Antarctic insect. Scientific Reports 15, 3890. https://doi.org/10.1038/s41598-025-86617-4
