Cobras fêmeas também possuem clitóris, revela estudo
Um time internacional de pesquisadores, liderados pela Universidade de Adelaide, Austrália, forneceu a primeira descrição anatômica do clitóris [hemiclitóris] de cobras fêmeas, em um estudo publicado esta semana no periódico Proceedings of the Royal Society B Biological Sciences (Ref.1). Além disso, os pesquisadores mostraram que o clitóris das cobras é composto de nervos e de células sanguíneas vermelhas consistentes com tecido erétil - sugerindo capacidade de inchaço e de estimulação durante o acasalamento similar ao clitóris humano. O achado do estudo derruba a tradicional alegação que essa estrutura era ausente ou disfuncional no aparelho reprodutivo desses répteis.
Estudos sobre a genitália externa das fêmeas de animais - incluindo humanos - têm sido historicamente escassos, mesmo com convincente evidência que a genitália feminina, e o clitóris em particular, possui papel funcional chave na reprodução. Por exemplo, variação na morfologia do clitóris tem sido ligada a diferentes graus de excitação sexual que pode levar ao aumento do potencial reprodutivo ao motivar fêmeas a copular ou formar laços sociais (1). Aumento da lubrificação vaginal, relaxamento da abertura vaginal e preparação do trato reprodutivo para receber esperma estão entre outras potenciais funções do clitóris (2).
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Estudos sobre o pênis [hemipênis] em lagartos e cobras são extensivos e compreensivos. O hemipênis é o órgão masculino de copulação nos Escamados (cobras, lagartos e anfisbenas), cujas formas e ornamentações (ex.: espinhos e ganchos) são altamente variáveis nesses répteis. Essa estrutura é geralmente armazenada invertida dentro do corpo desses animais e é evertida para reprodução através de tecido erétil, similar ao pênis humano. O homólogo do hemipênis é o hemiclitóris, ou seja, o clitóris dos Escamados. Porém, estudos sobre o hemiclitóris são raros, e frequentemente é assumido que o clitóris é vestigial ou perdido entre as linhagens de Escamados. Mesmo quando hemiclitóris são descritos em lagartos, é mais comum a ideia de que essas estruturas servem ao propósito de estimular o macho durante a intromissão do que estimular a fêmea.
Fig.3. Hemipênis duplo evertido de uma cobra macho da espécie Naja nivea. |
Fig.2. Hemipênis evertido de uma cobra macho da espécie Boiga ranawanei. |
Nos lagartos, o hemiclitóris é eversível e lembra características do hemipênis como o sulco espermático e músculos retratores. Por outro lado, nenhum real hemiclitóris tem sido descrito em cobras adultas e a aparente falta dessa estrutura nesses animais é intrigante já que esse órgão é encontrado na maioria das fêmeas adultas dos amniotas (mamíferos, aves [répteis] e répteis). Durante o desenvolvimento embrionário dos Escamados, os "brotos" genitais continuam crescendo para criar hemipênis ou regredir em tamanho para formar o hemiclitóris. Reportes de "hemiclitóris" em cobras adultas têm sido erroneamente associados com hemipênis em indivíduos intersexuais, incluindo as espécies Bothrops insularis, Bothrops jararaca e Lycodryas maculatus, e também a glândulas de feromônios.
No novo estudo, pesquisadores trouxeram as primeiras descrições macro-morfológicas de real hemiclitóris em sete cobras fêmeas adultas ao longo de diferentes espécies pertencentes a três famílias (Elapidae, Viperidae e Pythonidae) - através de dissecação -, descrição da estrutura via micro-CT com contraste difusível de diodo (DiceCT) em três fêmeas adultas (Elapidae e Colubridae) e uma descrição mais detalhada na espécie Australiana Acanthophis antarcticus (Fig.1), através de uma combinação de dissecação, escaneamento DiceCT e histologia. Usando histologia, os pesquisadores também compararam a estrutura do hemiclitóris nas fêmeas de A. antarcticus com o hemipenis em indivíduos machos juvenis e adultos. E, finalmente, usando DiceCT, foi demonstrada a diferença entre o hemiclitóris e as glândulas de feromônios adjacentes.
No total, foram analisados 10 espécimes adultos fêmeas, associados a nove espécies nativas de diferentes partes do mundo: A. antarcticus (Fig.2), Agkistrodon bilineatus (a), Bitis arietans (b), Helicops polylepis (c), Lampropeltis abnorma (d), Morelia spilota (e), Pseudechis colleti (f), Pseudechis weigeli (g) e Pseudonaja ingrami (h). Em todos os espécimes analisados, o hemiclitóris foi claramente identificado como duas estruturas separadas e não-eversíveis na cauda, posterior à cloaca e medial ou medioventral a duas glândulas adjacentes de feromônios (Fig.2-3). DiceCT e dissecação revelaram que os hemiclitóris são separados medialmente por tecido conectivo que juntos foram estruturas triangulares, com alguma variação de forma e significativa variação de tamanho entre as espécies (Fig.2-3).
Diferente do hemiclitóris em lagartos, todos os hemiclitóris examinados nas cobras não possuíam espinhos, sulcos espermáticos e músculos retratores, e não podiam ser evertidos por manipulação manual. Alguns hemiclitóris eram grandes e ressaltados, ocupando a maior parte da região anterior da causa que se estende dorsalmente no sentido da espinha (ex.: A. bilineatus, Fig.3a), enquanto outros eram pequenos e localizados medioventralmente em relação à glândula de feromônio (ex.: H. polylepis, Fig.3c; e P. ingrami, Fig.3h). Cobras da família Elapidae e Colubridae exibiam os menores hemiclitóris, enquanto a família Viperidae tinham os mais proeminentes. Em duas espécies (P. colleti e P. weigeli), uma característica críptica extra foi descrita: um "bolso" anterior ao hemiclitóris, posterior à cloaca e medialmente às aberturas das glândulas de feromônio.
Somadas, as análises claramente mostraram que o hemiclitóris das cobras não é uma simples forma vestigial do hemipênis, sendo uma estrutura distinta e cujas forma, tamanho e característica variáveis entre as espécies sugerem pressões seletivas similares àquelas impostas ao órgão reprodutor masculino. Enquanto ambas as estruturas (hemipênis e hemiclitóris) compartilham o mesmo caminho de desenvolvimento embrionário, análise histológica revelou várias diferenças anatômicas entre esses órgãos. O hemiclitóris é constituído de colágeno e espaços vascularizados (tecido erétil), tecido conectivo e densa inervação, mas com ausência de fibras musculares no tecido erétil, e outras características do hemipênis, como os espinhos.
Fibras musculares dentro do hemipênis fornecem suporte estrutural para inflação durante a eversão desse órgão, e os músculos retratores anexados ao hemipênis permitem retração do órgão de volta para dentro da cauda. Uma ausência dessas estruturas no hemiclitóris suporta a observação de que esse órgão não é eversível nas cobras, ao contrário do hemiclitóris em lagartos. Apesar da ausência de eversão, a presença de tecido erétil e a evidência de hemácias nesse tecido indicaram a capacidade de inchaço desse órgão através de suprimento sanguíneo, similar ao que ocorre no clitóris de mamíferos. Além disso, o hemiclitóris das cobras mostrou possuir maços de nervos e fibras nervosas únicas, indicando sensibilidade tátil também similar ao clitóris de mamíferos. A inervação e tecido erétil do hemiclitóris das cobras, e a posição desse órgão próximo ao lábio posterior da cloaca onde a pele é mais fina, indicam plausível estimulação durante o acasalamento através de comportamentos típicos de cópula, como emaranhamento de caudas e laço dorsal corporal.
Sobre a presença/ausência dos "bolsos" - constituídos de tecido mole oriundo do hemiclitóris - os autores do estudo sugeriram que essa estrutura pode auxiliar no acesso externo dos machos à secção anterior do hemiclitóris em algumas espécies.
REFERÊNCIAS
- Folwell et al. (2022). First evidence of hemiclitores in snakes. Proceedings of the Royal Society B, Volume 289 Issue 1989. https://doi.org/10.1098/rspb.2022.1702
- Andonov et al. (2017). "Does Sexual Selection Influence Ornamentation of Hemipenes in Old World Snakes?". The Anatomical Record, Volume 300, Issue 9, Pages 1680-1694.
- https://www.adelaide.edu.au/newsroom/news/list/2022/12/14/researchers-find-the-snake-clitoris