Revelado o mais antigo ancestral mandibulado dos humanos até o momento conhecido
Quando os tetrápodes (vertebrados de quatro membros) começaram a sair da água para a terra firme há aproximadamente 390 milhões de anos, iniciou-se uma notável diversificação na história do nosso planeta que deu origem aos anfíbios, répteis, aves e mamíferos que existem hoje, incluindo humanos e um número de vertebrados aquáticos, como os cetáceos. Os tetrápodes, por sua vez, evoluíram a partir de peixes ósseos com mandíbulas. Agora, em uma série de quatro estudos publicados na Nature (Ref.1-4), pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências e da Universidade de Uppsala, Suécia, revelaram uma enxurrada de fósseis datados de 436 até 439 milhões de anos atrás, incluindo alguns dos primeiros peixes mandibulados que emergiram no planeta em diferentes estágios de transição evolutiva. Os achados preencheram importantes lacunas na evolução inicial dos nossos ancestrais marinhos.
Há cerca de 400 milhões de anos, peixes evoluíram membros e saíram para dominar o ambiente terrestre, dando origem aos primeiros tetrápodes. Os membros mais antigos conhecidos do clado Osteichthyes (peixes ósseos) - ancestrais diretos dos tetrápodes (clado Tetrapoda) - emergiram há cerca de 425 milhões de anos, enquanto a mais antiga evidência de tetrápodes data do Devoniano Médio, há aproximadamente 393 milhões de anos, e o mais antigo fóssil de tetrápode data de aproximadamente 373 milhões de anos. Representativos modernos dos peixes cartilaginosos (clado Chondrichthyes; ex.: tubarões) e dos peixes ósseos (e tetrápodes em geral) possuem anatomias esqueléticas e trajetórias de desenvolvimento contrastantes, as quais ilustram a antiga divisão entre os dois clados a partir do ancestral comum.
Trabalhos paleontológicos nos últimos anos, explorando fósseis de vertebrados mandibulados dos períodos Siluriano superior e do Devoniano, têm revelado condições esqueléticas similares que nublam as linhas convencionais de distinção entre peixes ósseos, cartilaginosos e seus ancestrais mandibulados gnatostomados (superclasse de animais vertebrados, onde são reunidos os peixes que possuem mandíbula e os tetrápodes).
Análises baseadas em relógios moleculares - ferramentas de datação que deduzem a idade do mais recente ancestral comum de dois grupos de animais ao avaliar as diferenças no DNA das espécies (1) -, sugerem que o mais recente ancestral comum de todos os vertebrados mandibulados modernos viveu há ~450 milhões de anos durante o período Ordoviciano, e, portanto, a origem dos vertebrados com mandíbula é ainda mais antiga. Como resultado também, a origem dos peixes mandibulados não pode ser mais tardia do que esse período.
(1) Leitura recomendada: Como calcular a idade dos fósseis e da Terra?
No entanto, o registro fóssil dos vertebrados mandibulados somente se tornou abundante a partir do Devoniano Inferior (~419 milhões de anos atrás), o qual também marca o início da "Era dos Peixes". Nos últimos 10 anos, cientistas já encontram vários peixes mandibulados completos datados do Siluriano Tardio (~425 milhões de anos atrás). Mesmo com esses novos achados, as evidências fósseis ainda eram mais de 25 milhões de anos posteriores à estimativa teórica da origem desses animais, tornando elusiva a lacuna que marcou a transição evolutiva de peixes sem mandíbula para peixes mandibulados no Siluriano Inferior - uma das maiores inovações na história dos vertebrados.
Nos novos achados descritos na Nature, pesquisadores analisaram o depósito fóssil de Chongqing, na China, datados em 436-439 milhões de anos atrás. Os peixes fossilizados ali descobertos estavam muito bem preservados e com anatomia esquelética completa - cauda até a cabeça -, revelando o período de ascensão para a Era dos Peixes e sólida evidência de que os peixes mandibulados emergiram há pelo menos 439-440 milhões de anos. A partir do final do Siluriano, peixes mandibulados maiores e mais diversos evoluíram e começaram a se espalhar ao redor do mundo, abrindo a saga para esses animais se aventurarem no ambiente terrestre.
O MAIS ANTIGO COM ANATOMIA COMPLETA
Em dois estudos (Ref.1-2), os pesquisadores reportaram e descreveram três espécies com anatomia completa fossilizada. A primeira e mais abundante espécie foi nomeada Xiushanosteus mirabilis, um estranho peixe mandibulado com 3 cm de comprimento e exibindo uma "armadura" placodérmica. A cabeça achatada e semicircular, junto com a armadura do tronco, são vestígios de ancestrais sem mandíbula, mas as nadadeiras em pares e poderosa cauda tornam o X. mirabilis um nadador muito mais eficiente. Além disso, a espécie mostrou apresentar características de transição evolutiva no padrão de formação do teto craniano que os tornam mais próximos dos peixes ósseos do que dos cartilaginosos.
O segundo peixe reportado foi nomeado Shenacanthus vermiformis. Também muito pequeno, é quase um antigo ancestral dos tubarões. Enquanto tubarões como nós conhecemos são cobertos com escamas minúsculas, ou, no máximo, com pequenas placas mosaicas, o S. vermiformis possui proeminentes "armaduras de ombro" feitas de várias grandes placas que envolvem completamente o seu corpo. Essa característica, pensada ser exclusiva de placodermos, fornece uma forte pista de que os primeiros peixes cartilaginosos possuíam armadura corporal. Essa espécie ajuda a derrubar a ideia que os tubarões representam um estágio primitivo e que outros peixes mandibulados evoluíram a partir de um arquétipo associado aos tubarões; o oposto parece ser verdade.
Já o terceiro peixe é o mais antigo representante mandibulado com anatomia conhecida, nomeado Fanjingshania renovata. Reconstruído a partir de milhares de pequenos fragmentos fossilizados, esse estranho peixe possuía uma armadura óssea externa e múltiplos pares de espinhas de nadadeiras os quais separam a espécie dos atuais peixes mandibulados, tubarões, raias (ósseas e cartilaginosas) e peixes de nadadeiras lobadas. A espécie é anatomicamente próxima dos assim chamados "tubarões" espinhosos (acantodianos), um grupo extinto de peixes com ossificações na pele [região dos ombros] que ocorrem de forma primitiva nos peixes mandibulados. As características anatômicas do F. renovata o posicionam no início da árvore evolucionária dos primeiros vertebrados.
MAIS ANTIGOS DENTES DE MANDIBULADOS
Em outro estudo (Ref.3), pesquisadores reportaram e descreveram a mais antiga evidência direta para vertebrados com mandíbulas, representada pela espécie Qianodus duplicis, um gnatostomado do Siluriano Inferior. No caso, a espécie foi descrita a partir de fósseis associados a dentes arranjados e conectados em um par de fileiras no maxilar inferior que demonstram um número de características encontradas em grupos de gnastostomados modernos. Os dentes - cujas fileiras tinham de 1 a 2 mm de comprimento - foram datados em cerca de 439 milhões de anos atrás, e suportam uma emergência dos vertebrados com mandíbulas bem mais cedo do que o pensado, como parte do Grande Evento de Biodiversificação do Ordoviciano (aproximadamente 485-445 milhões de anos atrás).
ORIGEM DAS NADADEIRAS PAREADAS
Nadadeiras em pares são uma grande inovação que evoluiu na linhagem dos vertebrados com mandíbulas após divergência dos vertebrados sem mandíbula. Gnastostomados mostram uma diversidade de extensões pareadas na parede do corpo, variando de processos esqueléticos a simples abas protuberantes. Em contraste, osteostracanos (um grupo irmão aos vertebrados mandibulados) são interpretados de exibirem os primeiros apêndices pareados verdadeiros em uma posição peitoral, com apêndices pélvicos evoluindo mais tarde em associação com as mandíbulas.
No último estudo publicado na Nature (Ref.4), pesquisadores revelaram vestígios fossilizados - e também associados a uma anatomia completa - da espécie Tujiaaspis vividus, pertencente a um grupo irmão tanto dos osteostráceos (grupo de peixes sem mandíbulas de corpo couraçado) e dos vertebrados mandibulados. A espécie descrita possuía três pares de nadadeiras dorsais, uma cauda hipocordal simétrica e um par de nadadeiras ventrolateral branquial-a-caudal contínuas saindo do crânio. Essas nadadeiras ventrolaterais mostraram-se similares às nadadeiras pareadas no peitoral de outros gnastostomados primitivos, e especificamente aos sulcos ventrolaterais de osteostracanos cefalaspídeos que também possuem nadadeiras peitorais diferenciadas. Essas características colocam o T. vividus como uma condição percursora para a evolução dos osteostráceos e dos vertebrados mandibulados na qual as nadadeiras peitorais inicialmente emergiram como nadadeiras laterais pélvico-peitorais capazes de gerar suspensão de forma passiva, uma hipótese evolucionária há muito tempo defendida mas que ainda não possuía uma evidência direta de suporte.
De fato, é possível ver vestígios de dobras associadas a nadadeiras ventrolaterais no desenvolvimento embrionário dos atuais peixes mandibulados, ou seja, estruturas conservadas que remetem a grupos ancestrais como aqueles que englobam o T. vividus. Aliás, é possível experimentalmente manipular (edição genética) essa estrutura embrionária para reproduzi-las em indivíduos adultos.
Por fim, no novo estudo, os pesquisadores realizaram simulações computacionais retratando o T. vividus com e sem as nadadeiras ventrolaterais. Os resultados mostraram que essas nadadeiras alongadas realmente agem como a estrutura mecânica de movimentação dos aerobarcos, gerando passivamente movimento de suspensão mesmo sem qualquer contribuição muscular e permitindo um nado mais eficiente.
No geral, as análises fortemente apontaram que o ancestral dos vertebrados mandibulados possuíam nadadeiras ventrolaterais pareadas e alongadas que se tornaram separadas nas regiões peitoral e pélvica. Eventualmente, essas nadadeiras primitivas (pélvicas e peitorais) evoluíram musculatura e suporte esquelético, permitindo aos nossos ancestrais peixes melhor controlar o nado e adicionar propulsão. Ao longo de centenas de milhões de anos, essas nadadeiras deram finalmente origem aos membros de locomoção dos vertebrados terrestres, incluindo os braços e pernas nos primatas (2).
(2) Leitura recomendada: Mutações naturais em peixes de laboratório geraram 'antebraços' nas suas nadadeiras
AMANHECER DOS PEIXES
No vídeo abaixo, reconstrução 3D da fauna, ambiente e possível tafonomia (3) do período inicial do Siluriano, na região de Chongquing, Sul da China, mostrando as espécies exploradas nos quatro estudos publicados na Nature.
(3) Tafonomia é o estudo sistemático da evolução de fósseis, desde a morte dos indivíduos até a sua final incorporação e transformações dentro da rocha que os contém.
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS
- Zhu et al. (2022). The oldest complete jawed vertebrates from the early Silurian of China. Nature 609, 954–958. https://doi.org/10.1038/s41586-022-05136-8
- Andreev et al. (2022). Spiny chondrichthyan from the lower Silurian of South China. Nature 609, 969–974. https://doi.org/10.1038/s41586-022-05233-8
- Andreev et al. (2022). The oldest gnathostome teeth. Nature 609, 964–968. https://doi.org/10.1038/s41586-022-05166-2
- Gai et al. (2022). Galeaspid anatomy and the origin of vertebrate paired appendages. Nature 609, 959–963. https://doi.org/10.1038/s41586-022-04897-6
- https://english.cas.cn/head/202209/t20220928_320887.shtml