Experimento brasileiro confirma um dos principais fundamentos da Física Quântica
José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Agora com mais de um século de existência e um largo rastro de aplicações tecnológicas – do LED (sigla em inglês para diodo emissor de luz) ao GPS (sigla em inglês para sistema de posicionamento global) –, a física quântica foi, quando surgiu, um enorme desafio para a visão de mundo dos cientistas envolvidos. Polêmicas apaixonadas pontuaram o seu desenvolvimento – a mais importante delas travada nas décadas de 1920 e 1930 por dois gigantes da ciência: Albert Einstein (1879-1955) e Niels Bohr (1885-1962).
A pauta da discussão era a realidade física do mundo microscópico: molecular, atômico e subatômico. Seria ela algo rigorosamente determinado, como parece acontecer nos fenômenos macroscópicos da vida cotidiana, ou o próprio processo de observação científica influenciaria as propriedades do sistema observado?
Einstein defendia a ideia de que a realidade dos estados microscópicos independia do contexto experimental. A dificuldade estava em conhecer essa realidade (!). Para isso, seria preciso completar a teoria quântica, com a incorporação de “variáveis ocultas”, até então ignoradas. Bohr, por outro lado, afirmava que os sistemas quânticos apresentavam “aspectos mutuamente excludentes e complementares”. Esses jamais poderiam ser acessados ao mesmo tempo em um arranjo experimental. O processo de observação determinaria qual deles iria se manifestar.
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(!) Einstein e outros notáveis físicos, como o Erwin Schrödinger, inicialmente rejeitaram a assim chamada Interpretação de Copenhagen (entendimento de Bohr dos fenômenos quânticos). Isso culminou inclusive no famoso experimento do Gato de Schrödinger, até hoje mal compreendido entre o público e muito distorcido na mídia popular. Para mais detalhes sobre essa questão, fica a sugestão de leitura: Qual o propósito do Gato de Schrödinger?
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Há controvérsia entre os historiadores da ciência sobre se essa discussão teve ou não um vencedor. Mas, seja por seu valor intrínseco, seja por fatores circunstanciais, a opinião de Bohr acabou predominando. E seu famoso “Princípio da Complementaridade” – que constitui, junto com o “Princípio da Incerteza” de Werner Heisenberg (1901-1976), o fundamento da chamada “Interpretação de Copenhague da mecânica quântica” – tornou-se amplamente aceito na comunidade científica e fora dela.
Dito de forma simplificada, o Princípio da Complementaridade afirma que não é possível acessar completamente a realidade microscópica a partir de uma única configuração. Tudo o que cabe à ciência dizer é como ela se comporta no contexto de uma observação particular. E ela se comporta de maneira dual, exibindo uma característica ou outra, dependendo de como o experimento é realizado. Embora essas características sejam contraditórias e mutuamente excludentes do ponto de vista clássico, é preciso considerar ambas para ter uma descrição exaustiva do fenômeno.
A partir de 2011, experimentos sofisticados foram feitos por diferentes grupos de pesquisadores ao redor do mundo com o intuito de testar o Princípio da Complementaridade de uma forma diferente da que havia sido realizada anteriormente. E, neles, um fóton (partícula elementar da luz) pareceu manifestar um comportamento híbrido, de partícula e onda ao mesmo tempo, no mesmo arranjo experimental, aparentemente violando o pressuposto de Bohr. Assim, foi proposta uma revisão radical do Princípio da Complementaridade em experimentos quanticamente controlados.
Um novo trabalho, nessa linha de investigação, foi realizado no Centro de Ciências Naturais e Humanas da Universidade Federal do ABC (CCNH-UFABC). Os resultados foram divulgados recentemente na revista Communications Physics.
“Nosso estudo teve duas grandes motivações. A primeira foi verificar a validade do Princípio da Complementaridade de Bohr em cenários de controle quântico. A segunda foi aprofundar a investigação do realismo físico em experimentos quanticamente controlados, para saber se apenas a estatística observada no experimento com controle quântico seria suficiente para descrever uma narrativa precisa da dualidade partícula-onda”, diz o físico Pedro Ruas Dieguez, primeiro autor do trabalho e pós-doutorando no International Centre for Theory of Quantum Technologies (ICTQT), ligado à Universidade de Gdansk, na Polônia, e à Academia Austríaca de Ciências, na Áustria.
“Com uma configuração experimental diferente da utilizada nos estudos feitos ao longo da última década, verificamos experimentalmente e também por equações teóricas que a determinação simultânea das duas propriedades, de partícula e onda, não se sustenta. Mais ainda: que a impossibilidade de violar o Princípio de Bohr está associada a uma importante propriedade quântica, o emaranhamento, um tipo de correlação não clássica. Concluímos que correlações quânticas entre spins produzidas em nosso experimento foram suficientes para demonstrar que os realismos das interpretações partícula e onda jamais podem ser observados simultaneamente, mesmo usando um controle quântico que possibilite interpolar entre os dois comportamentos”, prossegue o pesquisador.
A dualidade partícula-onda
Para entender esse resultado é necessário retroceder quase cem anos na história, até 1924, quando, em sua tese de doutorado, o físico e príncipe francês Louis de Broglie (1892-1987) propôs uma equação que associa a qualquer corpo material uma onda. Se a massa do corpo é muito grande, como ocorre com os entes macroscópicos, o comprimento de onda se torna tão pequeno que escapa à capacidade de detecção dos instrumentos de medida. Quando a massa é pequena, porém, como acontece com moléculas, átomos e partículas subatômicas, as características ondulatórias se tornam bastante expressivas.
A comprovação experimental por excelência da proposição de De Broglie foi dada pelo famoso “experimento das duas fendas”. O aparato experimental consiste em uma fonte de elétrons que emite uma partícula de cada vez. As partículas só podem passar através de duas fendas paralelas e incidem em um anteparo recoberto com papel fotográfico. Se apenas uma das fendas é aberta, as impressões produzidas no papel são características de impactos causados por corpúsculos. Mas, quando as duas fendas são abertas simultaneamente, a figura formada pelas impressões no papel apresenta o padrão típico do fenômeno de interferência, que ocorre quando dois ou mais movimentos ondulatórios se sobrepõem.
Uma maneira experimentalmente mais sofisticada de observar a dualidade partícula-onda é proporcionada pelo interferômetro de Mach-Zehnder de fóton único. Nesse caso, o padrão de interferência aparece quando o dispositivo está fechado e desaparece quando ele é aberto.
“Segundo Bohr, a realidade de partícula ou onda só é estabelecida depois que todo o arranjo experimental se encontra definido. O que aconteceria se fosse possível escolher entre deixar o interferômetro aberto ou fechado somente depois que o fóton já tivesse percorrido o caminho do interferômetro e, portanto, adquirido o aspecto de partícula ou de onda? Foi este o interessante experimento proposto pelo físico John Wheeler [1911-2008] para testar a validade do Princípio da Complementaridade de Bohr”, conta Dieguez.
Wheeler apresentou sua proposta como um experimento mental, que parecia ser muito difícil de realizar na prática. Porém, esse teste, que ficou conhecido como "experimento de escolha atrasada de Wheeler", acabou sendo feito de verdade quase 30 anos mais tarde. E seus resultados foram publicados em 2007 na revista Science.
“Eles mostraram que, mesmo atrasando a escolha, o Princípio da Complementaridade não era violado. Com o interferômetro aberto, o sistema quântico continuava a se comportar como partícula. E, com o interferômetro fechado, se comportava como onda. Portanto, explicitando o fato de que cada arranjo experimental, interferômetro aberto ou fechado, estava associado a um aspecto, de partícula ou de onda do sistema, respectivamente”, informa Dieguez.
O Princípio da Complementaridade parecia estar a salvo. Mas é uma característica do processo científico nunca descansar sobre os resultados alcançados. Assim, em 2011, os físicos teóricos conceberam uma versão inteiramente quântica do experimento de Wheeler. Agora, em vez de escolher de forma atrasada se o interferômetro seria aberto ou fechado, os pesquisadores propuseram usar o princípio de superposição quântica para construir um interferômetro que pudesse estar aberto e fechado ao mesmo tempo.
Essa situação, aparentemente paradoxal, é diferente do lançamento de uma moeda, na qual existe a possibilidade de obter um de dois resultados excludentes: cara ou coroa. No caso da superposição quântica, as duas possibilidades coexistem, assim como duas ondas na superfície de um lago podem se sobrepor. Nessa nova geração de experimentos, um sistema quântico adicional é utilizado para controlar a configuração do interferômetro.
“Essa proposta teórica deu origem a experimentos com controle quântico realizados por grupos ao redor do mundo, incluindo um grupo experimental brasileiro. Os resultados pareceram indicar algo surpreendente. Com base na capacidade de interpolar suavemente as estatísticas entre um padrão de partícula e um padrão de onda, os pesquisadores sugeriram a manifestação de comportamentos híbridos, de partícula e onda, utilizando-se um mesmo aparato experimental para sua detecção. Isso parecia contrariar, pela primeira vez na história, o Princípio de Bohr, e resultou em uma série de discussões na literatura científica”, relata Dieguez.
Nova configuração experimental
Foi esse histórico que o levou a realizar, com colaboradores, o novo experimento agora em pauta. “Nós empregamos um quantificador do grau de realismo físico de um determinado estado quântico para uma certa característica observável. A partir desse critério de realidade, mostramos que não havia conexão de fato entre a estatística observada nos experimentos anteriores com os elementos de realidade de partícula e onda. Este foi um ponto importante. A partir dele, fomos capazes de argumentar que, em vez de revisar o Princípio de Bohr, deveríamos revisar primeiro o próprio arranjo experimental usado nos experimentos de escolha quântica atrasada”, afirma o pesquisador.
O grupo propôs, então, uma outra configuração experimental para estabelecer a ligação entre os resultados visíveis fornecidos pelo interferômetro, dados pela estatística final, e os elementos de realidade de partícula e onda dentro do dispositivo.
“Nós implementamos essas ideias em um experimento de prova de princípio, usando ressonância magnética nuclear [RMN], técnica similar à dos exames de imagem usados em medicina. Nesse experimento, os spins [propriedade magnética das partículas elementares análoga ao posicionamento da agulha de uma bússola] dos núcleos de diferentes átomos em uma molécula de formato de sódio [HCO2Na] foram manipulados com ondas de rádio”, descreve Dieguez.
O spin do núcleo de carbono foi usado para controlar quanticamente um interferômetro, utilizado para o spin nuclear do hidrogênio. O interferômetro estava associado a duas configurações possíveis do hidrogênio, análogas a dois caminhos que podiam ser percorridos. Dependendo do estado do núcleo de carbono, o interferômetro podia estar aberto, fechado ou em uma superposição das duas possibilidades.
“Esse controle do carbono sobre o hidrogênio ocorre devido à interação entre ambos e pulsos de rádio covenientemente utilizados [o cenário do experimento é representado esquematicamente na figura que ilustra esta reportagem]. Ao final do experimento, a probabilidade de observação do spin do hidrogênio em uma dada direção estava associada a uma diferença entre os dois caminhos do interferômetro e ao seu controle quântico pelo spin do carbono. Esse novo arranjo experimental produziu exatamente a mesma estatística final dos experimentos anteriores de escolha atrasada quântica. No entanto, mostramos que na nova configuração os elementos de realidade para partícula ou onda dentro do interferômetro estavam formalmente associados à probabilidade medida. Diferentemente dos experimentos realizados na última década, nossos resultados validam, uma vez mais, o Princípio da Complementaridade de Bohr”, diz Dieguez.
E arremata: “Concluímos que a correlação quântica entre os spins dos núcleos de hidrogênio e carbono no experimento era suficiente para demonstrar que ambas interpretações realistas, de partícula e de onda, jamais poderiam ser observadas simultaneamente, mesmo usando um controle quântico que nos permitisse interpolar entre os dois comportamentos. Tal resultado corrobora a ideia de que a realidade física é descrita por aspectos mutuamente excludentes, mas que se completam”.
O experimento foi realizado no Laboratório Multiusuário de Ressonância Magnética Nuclear da Universidade Federal do ABC. A equipe experimental, toda ela constituída por pesquisadores brasileiros, foi liderada por Roberto Menezes Serra, professor da UFABC. O trabalho contou também com a participação do professor Renato Moreira Angelo, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Todo o trabalho ocorreu durante a pandemia de COVID-19, respeitando e seguindo estritamente as regras de segurança sanitária estabelecidas pela universidade.
A investigação contou com suporte financeiro da FAPESP por meio do Projeto Temático “Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Informação Quântica”, coordenado por Amir Caldeira, e da Bolsa de Pós-Doutorado “Efeitos Não-Clássicos em Termodinâmica Quântica”, supervisionada por Serra.
O artigo Experimental assessment of physical realism in a quantum-controlled device pode ser acessado em: www.nature.com/articles/s42005-022-00828-z.
> Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.