Vacina contra a COVID-19 mostrou garantir superimunidade para quem já teve SARS
Por causa do acúmulo de mutações e subsequentes divergências evolutivas, várias variantes de preocupação do novo coronavírus (SARS-CoV-2) - ligadas a uma maior capacidade de evasão imune e maior transmissibilidade - estão circulando e disputando dominância. Atualmente, a maior preocupação é com a variante Delta, a qual é pelo menos duas vezes mais transmissível e associada com um maior risco de hospitalização (!). Dados de Israel inclusive mostram que mesmo aqueles completamente vacinados são suscetíveis à infecção pela Delta, apesar das vacinas ainda garantirem alta eficácia clínica contra hospitalização e morte. Agora, em um estudo publicado no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.1), pesquisadores mostraram que indivíduos previamente infectados pelo SARS-CoV-1 (coronavírus responsável pela SARS) e que recebem a vacina da Pfizer contra o SARS-CoV-2 ganham uma superimunidade contra as variantes de preocupação e provavelmente contra os sarbecovírus em geral.
(!) Leitura recomendada: Por que a variante Delta é muito mais transmissível?
O SARS-CoV-2 compartilha uma identidade de sequenciamento genômico, no geral, de 80% com o SARS-CoV-1, este o qual foi responsável pela epidemia da síndrome respiratória aguda grave (SARS) em 2002-2003 que causou mais de 8 mil infecções e mais de 700 mortes registradas ao redor do mundo. O SARS-CoV-1 e o SARS-CoV-2 são coronavírus do gênero Betacoronavirus e do subgênero Sarbecovirus. Antigeneticamente, esses dois coronavírus são colocados em dois distintos clados filogenéticos, isso porque os anticorpos no plasma convalescente de pacientes com SARS ou COVID-19 não são capazes de neutralização cruzada.
Pacientes que tiveram SARS no passado já mostraram expressar anticorpos contra o SARS-CoV-1 persistindo por pelo menos 17 anos. Porém, esses anticorpos não são capazes de neutralizar as partículas virais do SARS-CoV-2.
A emergência recente das variantes do SARS-CoV-2 que podem parcialmente evadir a resposta imune a vacinas que são baseadas na cepa original do vírus aumentam a necessidade para uma vacina de segunda geração que seja protetiva contra infecção por todas e quaisquer futuras variantes do SARS-CoV-2. No momento, vários grupos de pesquisa estão trabalhando para o desenvolvimento de uma vacina desse tipo (vacina pan-SARS-CoV-2).
Dois estudos prévios, publicados no periódico The New England Journal of Medicine (Ref.2) já tinham trazido importante evidência reforçando a importância da vacinação mesmo para indivíduos previamente infectados e mesmo após uma única dose.
No primeiro estudo, pesquisadores analisaram dados reunidos no HOSTED (Household Transmission Evaluation Dataset), um banco de dados na Inglaterra com informações de casos confirmados em laboratório de pessoas com COVID-19 compartilhando o mesmo ambiente doméstico. Foram 960765 contatos domésticos de pacientes não-vacinados, e 96898 casos secundários de COVID-19 (10,1%). Vacinados receberam ou o imunizante da AstraZeneca (ChAdOx1 nCoV-19) ou o imunizante da Pfizer (BNT162b2).
Os pesquisadores encontraram que, no geral, a transmissão do vírus (SARS-CoV-2) no ambiente doméstico era aproximadamente 40-50% menor nas casas de pacientes vacinados 21 dias ou mais antes de testar positivo do que em casas onde o infectado não havia sido vacinado. Os resultados foram similares entre as duas vacinas, e a maioria dos vacinados (93%) havia recebido apenas uma dose do imunizante.
No segundo estudo, pesquisadores investigaram o efeito de uma única dose da vacina da Pfizer na atividade de neutralização contra as variantes de preocupação Alfa (B.1.1.7), Beta (B.1.351) e Gama (P.1) em pessoas previamente infectadas com o SARS-CoV-2. A variante Beta é, até o momento, aquela com maior capacidade de escape imune.
Foram 18 amostras do soro sanguíneo de 6 profissionais de saúde infectados (todos do sexo feminino, idades de 32 a 67 anos), obtidas de cada paciente em três momentos: (i) 1 a 12 semanas após a infecção natural, (ii) imediatamente antes da vacinação, e (iii) 1 a 2 semanas após a vacinação.
A titragem geométrica média de anticorpos neutralizantes em (i) mostrou ser 456, 256, 71 e 8 para o vírus original e as variantes Alfa, Beta e Gama, respectivamente. Em (ii), na mesma sequência, foi reduzida para 81, 40, 36 e 7. E, em (iii) - após a vacinação -, aumentou de forma dramática para 9195, 8192, 2896 e 1625. A resposta foi similar em todas as pacientes analisadas.
No novo estudo, os pesquisadores resolveram investigar a possibilidade de um amplo espectro de neutralização em sobreviventes da infecção pelo SARS-CoV-1 em Singapura - país muito afetado por esse coronavírus - que receberam a vacina mRNA-baseada da Pfizer-BioNTech (BNT162b2) contra o SARS-CoV-2.
No total, foram analisados amostras de soro sanguíneo de quatro grupos:
(i) 10 participantes que foram infectados pelo SARS-CoV-1 em diferentes períodos no passado (2012-2020), antes do início da campanha de vacinação contra a COVID-19 iniciado em janeiro de 2021 em Singapura.
(ii) 10 pacientes infectados com o SARS-CoV-2 em 2020.
(iii) 10 participantes 14 dias após receberem a segunda dose da vacina da Pfizer, equivalente a 35 dias após a primeira dose.
(iv) 10 sobreviventes da COVID-19 que receberam duas doses da vacina da Pfizer.
(v) 8 sobreviventes da infecção por SARS-CoV-1 21 a 62 dias após a primeira dose da Pfizer; 4 das 8 amostras vieram do grupo (i).
Em laboratório, as amostras de cada grupo foram testadas quanto à capacidade de neutralização contra 10 sarbecovírus: 7 do clado SARS-CoV-2 (cepa original do SARS-CoV-2; variantes de preocupação Alfa, Beta e Delta; coronavírus de morcego RaTG13 e coronavírus de pangolim GD-1 E GX-P5L) e 3 do clado SARS-CoV-1 (batW1V1, batRsSHCO14 e SARS-CoV-1).
Das amostras analisadas (e anticorpos neutralizantes associados), aquelas oriundas do grupo (v) mostraram alta capacidade de neutralização contra todos os coronavírus testados, bloqueando efetivamente a ligação entre o receptor glicoproteico ACE2 humano e o domínio de ligação do receptor (RBD) da proteína Spike dos sarbecovírus. Células-B (imunidade celular) capazes de se ligar tanto ao RBD do SARS-CoV-1 quanto do SARS-CoV-2 mostraram muito mais enriquecidos no grupo (v) do que nos outros grupos. As amostras dos outros grupos mostraram significativa limitação de neutralização cruzada e contra variantes de preocupação.
Os pesquisadores sugeriram que a imunidade humoral e celular conferida pela exposição a dois distintos coronavírus próximo-relacionados confere ao nosso sistema imune a chance de efetivamente reconhecer epítopos associados ao RBD altamente conservados entre os sarbecovírus. Isso aponta para o possibilidade de desenvolvimento de uma vacina de terceira geração pan-sarbecovírus, que pode proteger a população humana contra todas as variantes de preocupação presentes e futuras, e até mesmo contra novos clados dentro desse subgênero, e necessitando potencialmente de uma única dose.
REFERÊNCIAS