Assinatura neurobiológica da transgeneridade é reforçada por mega-análise
Em contraste com indivíduos cisgêneros, pessoas transgêneras se identificam com um gênero (masculino ou feminino) oposto àquele tradicionalmente associado ao sexo biológico de nascimento. Apesar de evidência cada vez crescente apontando diferenças neurobiológicas significativas entre cisgêneros e transgêneros, estudos clínicos ainda são limitados devido ao pequeno tamanho populacional dos indivíduos transgêneros - refletindo maior dificuldade no recrutamento de voluntários. Agora, um robusto estudo publicado no periódico The Journal of Sexual Medicine (1), conduzido por cientistas do ENIGMA Transgender Persons Working Group, trouxe mais uma importante evidência de suporte para a determinação neurobiológica da transgeneridade, revelando significativas diferenças na estrutura cerebral entre cisgêneros e transgêneros, de forma similar a diferenças únicas observadas entre homens e mulheres cisgêneros.
Apesar de discursos políticos e ideológicos sem suporte da ciência sugerirem que a transgeneridade - assim como a homossexualidade - emerge a partir de influências ideológicas e educacionais, evidências científicas claramente apontam fatores biológicos como principais determinantes. Identidade de gênero e orientação sexual não são determinados por simples escolha do indivíduo, aprendizado ou mesmo influencias sócio-culturais. Indivíduos transgêneros e homossexuais marcam provavelmente toda a história humana, e estão presentes em diferentes sociedades, independentemente do contexto cultural, social e temporal.
Nesse sentido, um cenário frequentemente defendido para a manifestação da transgeneridade é a de que a diferenciação sexual do cérebro e o desenvolvimento do corpo divergem em indivíduos transgêneros. Evidência primordial para isso vem de estudos em bebês do sexo feminino (fêmeas) com hiperplasia congênita adrenal, os quais acabam desenvolvendo comportamentos masculinos ao interagir com brincadeiras diversas. Devido à circulação pré-natal de testosterona (fator hormonal-uterino), o cérebro de tais bebês XX seria estruturalmente organizado como um cérebro mais masculino, enquanto o desenvolvimento do corpo é feminino. Fatores genéticos e epigenéticos, além daqueles hormonal-uterinos, estão também implicados (2). Observações de indivíduos com genitália indeterminada fornecem outro forte exemplo de como a identidade de gênero se manifesta de forma independente das influências sociais, culturais e educacionais (2).
(2) Para mais informações: O que é a tal da Ideologia de Gênero?
A manifestação da identidade de gênero possui coerência evolutiva, e inclusive é argumentado que outros animais também manifestam formas de identidade de gênero (2). Comportamentos e afinidades diferenciadas e otimizadas para cada sexo biológico (macho e fêmea), determinados por assinaturas neurobiológicas, podem aumentar a chance de sobrevivência e o sucesso reprodutivo. Por exemplo, é comum observamos rituais de acasalamento diferenciais entre os sexos de uma mesma espécie. Hierarquias e relações sociais são muitas vezes construídas com base nos sexos dos indivíduos. E podemos citar vários outros exemplos nessa linha. Experimentos laboratoriais, alterando genes manifestados no cérebro de ratos conseguem mudar o comportamento típico de machos para comportamentos típicos de fêmeas (3).
(3) Leitura recomendada: Comportamentos e preferências sexuais em ratos variam ao se ativar ou desativar uma região específica do cérebro
Variações genéticas e ações hormonais anômalas no desenvolvimento uterino que alterem - mesmo que de forma mínima - estruturas cerebrais críticas, podem, plausivelmente, alterar a identidade de gênero manifestada pelo cérebro de uma pessoa, fazendo esta ter uma afinidade maior com o sexo oposto associado naturalmente e sócio-culturalmente a um determinado grupo (ex.: aparência física, comportamento, vestuário, etc.). O mesmo raciocínio pode ser válido para indivíduos não-binários, os quais não se identificam nem com o sexo masculino nem com o sexo feminino.
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No novo estudo, os pesquisadores analisaram dados clínicos gerados a partir de imagem por ressonância magnética (MRI) de 803 homens transgêneros (214 pessoas do sexo feminino), mulheres transgêneras (172 pessoas do sexo masculino), homens cisgêneros (221 pessoas do sexo masculino) e mulheres cisgêneras (196 do sexo feminino) foram analisados em termos de medidas de estrutura cerebral, incluindo volume de matéria cinzenta, área superficial cortical e espessura cortical. Nenhum dos indivíduos transgêneros haviam passado por tratamento hormonal.
Os resultados das análises mostraram que os indivíduos transgêneros diferiam significativamente de pessoas cisgêneras com respeito aos volumes e áreas superficiais subcorticais do cérebro, mas não em relação à espessura cortical. Além disso, comparando os quatro grupos analisados, os pesquisadores observaram uma variedade de padrões que não apenas dependiam do direcionamento relativo à identidade de gênero (maior tendência ou ao masculino ou ao feminino) mas também da medida cerebral e também da região cerebral examinada.
Os pesquisadores concluíram que ao invés de serem meramente direcionados para um lado ou outro do espectro masculino-feminino, as pessoas transgêneras parecem apresentar um fenótipo cerebral único. Isso corrobora um estudo clínico publicado em 2020 na Nature (4), onde os pesquisadores encontraram que a estrutura cerebral das mulheres transgêneras não se alinhava nem com àquela dos homens cisgêneros nem com àquela das mulheres cisgêneras, argumentando que seria mais apropriado classificar os indivíduos transgêneros fora do conceito binário dominante.
(4) Leitura recomendada: Cientistas revelam significativas diferenças na estrutura cerebral de transgêneros
O avanço da neurociência nessa área cada vez mais reforça o alerta contrário às políticas públicas e campanhas ideológicas que abordam a transgeneridade como simples "escolha" do indivíduo ou um simples "capricho social" - algo que não faz sentido mesmo desconsiderando o contexto neurobiológico. O não entendimento da natureza associada à identidade de gênero, e a persistência de conceitos retrógrados, traz ainda mais prejuízo a um grupo minoritário já bastante prejudicado pelo preconceito. O mesmo se aplica à orientação sexual.
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> O ENIGMA (Enhancing NeuroImaging Genetics through Meta Analysis) é uma colaboração englobando mais de 1400 cientistas de 43 países que estudam o cérebro humano. O projeto teve início em 2009, com o objetivo inicial de realizar um estudo genético de neuroimagem de larga escala, e tem desde então se diversificado em dezenas de grupos de trabalho, reunindo e analisando dados clínicos, expertise e recursos produzidos ao redor de todo o mundo para o esclarecimento de questões nas áreas de neurociência, psiquiatria, neurologia e genética.
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(1) Publicação do estudo: https://www.jsm.jsexmed.org/article/S1743-6095(21)00425-2/pdf