Cientistas finalmente descobrem porque esses coelhos andam sobre as duas patas dianteiras
Locomoção saltatória é um tipo de movimento em pulos encontrado em vários clados de animais. Nos mamíferos, esse tipo de locomoção é encontrado entre coelhos, lebres, cangurus e em algumas espécies de roedores. Porém, os mecanismos moleculares e genéticos que controlam a locomoção saltatória eram ainda desconhecidos. Agora, em um estudo publicado no periódico PLOS GENETICS (1), analisando uma curiosa linhagem de coelhos que frequentemente adota um andar bípede, sem pular, conhecida como sauteur d'Alfort, pesquisadores identificaram a primeira forte pista para esclarecer a "genética saltatória": o gene RORB é requerido para a performance de locomoção saltatória em coelhos, e mutação nesse gene é responsável pela perda da capacidade de saltos nesses animais.
O desenvolvimento de locomoção coordenada entre os membros é um importante traço crucial para a sobrevivência e reprodução de vários animais. O padrão de coordenação inter-membros (modo de locomoção) de cada espécie resulta de uma acurada integração de informação sensorial e comandos motores. Essa integração é responsável por determinar o ritmo, atividade muscular flexora-extensora dentro de um membro, e coordenação direita-esquerda entre os membros, e sendo amplamente controlada pelas redes neurais do gerador central de padrões (CPG) localizadas dentro da medula espinhal.
A maioria dos mamíferos compartilham a capacidade de trocar entre diferentes modos de locomoção dependendo da velocidade ou terreno (ex.: andar, trotar, galopar). Esses modos de locomoção também diferem consideravelmente entre espécies, indo desde locomoção bípede até quadrúpede, e de alternação entre membros da direita e da esquerda observada na maioria dos mamíferos até a sincronização entre os membros da direita e da esquerda que permite uma locomoção via saltos em cangurus, a maior parte dos lagomorfos, e alguns roedores. Porém, apesar desses modos de locomoção serem bem caracterizados em termos biomecânicos, neurais, fisiológicos e morfológicos, são escassas as tentativas de caracterização molecular, genética e de desenvolvimento embrionário.
Entre os mamíferos, coelhos e lembres possuem um modo bem particular de locomoção saltatória caracterizado por diferentes padrões de flexão e de extensão dos membros dianteiros (alternado rítmico) e dos membros traseiros (sincronizado bilateral), com uma relativamente mais pronunciada extensão do que flexão nos membros traseiros, levando aos característicos saltos observados nesse animais.
Entre os coelhos domesticados (Oryctolagus cuniculus domesticus), existe uma singular linhagem chamada sauter d'Alfort conhecida de diferir do modo normal de locomoção observado entre os lagomorfos (coelhos e lebres), exibindo um comportamento notavelmente anormal de locomoção. Durante baixas velocidades, na fase de transição, os coelhos dessa linhagem levantam excessivamente seus membros traseiros. A altas velocidades, os movimentos dos membros traseiros, ao invés de serem sincronizados, mostram um leve deslocamento diferencial, proibindo a performance de saltos. Essa descoordenação acaba resultando em uma locomoção muito ineficiente. Como consequência, os indivíduos da linhagem sauter d'Alfort adaptam o modo de locomoção para movimentos de longa distância ou mais rápidos levantando os membros traseiros no ar, mantendo o corpo na vertical e se movendo apenas pelos membros dianteiros e de forma alternada, similar a um acrobata humano andando no chão com as mãos. Esse estranho modo de locomoção é mostrado no vídeo abaixo.
Além desse peculiar modo de locomoção, os coelhos sauter d'Alfort também podem expressar outros problemas anatômicos, nascem cegos por causa de displasia retinal, e começam a desenvolver catarata após o primeiro ano de vida. O fenótipo sauter d'Alfort, incluindo o modo anormal de locomoção e as lesões oculares, possui uma base genética simples, controlada por um único alelo recessivo autossômico (ou seja, basta uma cópia da variante genética associada para o fenótipo ser expresso).
No novo estudo, os pesquisadores resolveram investigar as bases genéticas para o distinto modo de locomoção dos coelhos sauter d'Alfort. Para isso, eles realizaram uma análise genômica comparativa entre coelhos selvagens normais, aqueles da linhagem sauter d'Alfort e indivíduos derivados do cruzamento entre ambos. Os resultados da análise revelaram uma mutação diferencial associada ao gene órfão do receptor B (RORB), a qual causa versões aberrantes - ou às vezes nenhuma - da proteína RORB serem produzidas em um grupo específico de interneurônios na medula espinhal. Essa proteína é um fator de transcrição, significando que ela controla a atividade de vários outros genes.
Análises subsequentes mostraram que a mutação nas duas cópias do gene RORB (indivíduos homozigotos) resultam na completa eliminação desses interneurônios, e em coelhos com apenas uma cópia desse gene (heterozigotos) existe uma redução de aproximadamente 25%. Os interneurônios afetados são inibitórios - eles param as células neurais de disparar sinais elétricos - e, quando estão ausentes, os coelhos flexionam excessivamente alguns músculos, levantando suas perdas traseiras mais do que deveriam.
Existe evidência também que o gene RORB controla a coordenação dos membros traseiros em roedores: ratos sem um gene RORB funcional caminham balançando como patos, e exibem coincidentemente degeneração retinal. Além disso, a mutação identificada no novo estudo afeta o primeiro nucleotídeo no íntron 9 do gene RORB, o qual é altamente conservado entre todos os 70 mamíferos do clado Eutheria (mamíferos placentários) para os quais informações genéticas nesse sentido estão disponíveis. Coletivamente, essas evidências indicam que o gene provavelmente é crucial para a locomoção de todos os animais com membros, incluindo humanos.
(1) Publicação do estudo: https://journals.plos.org/plosgenetics/article?id=10.1371/journal.pgen.1009429