Cientistas conseguem entrar no sonho das pessoas e dialogar com os sonhadores lúcidos
Sonhos nos levam a diferentes realidades, um mundo alucinatório que parece tão real quanto qualquer experiência acordada. Apesar de ser uma marcante característica do sono humano, os sonhos permanecem ainda pouco explicados em termos científicos. O maior desafio de estudos neurocientíficos nesse sentido é a dependência de dados retrospectivos e sujeitos a sérias distorções do indivíduo relatando os sonhos. Nesse sentido, um novo estudo publicado no periódico Current Biology (1) é o primeiro a reportar uma comunicação efetiva em tempo real com pessoas sonhando, durante momentos de autoconsciência dos sonhos (sonhos lúcidos).
Por que nós temos sonhos? Como os cenários de sonhos são criados? Sonhar confere qualquer benefício para as funções cerebrais? Essas e outras questões têm permanecido em aberto, em parte por causa das opções limitadas disponíveis para investigar as experiências durante os sonhos. Reportes de sonhos dados depois do indivíduo acordar tendem a ser distorcidos ou fragmentados devido à baixa habilidade de formação de memórias no estado de sono e a capacidade limitada de retenção de informações recentes na mente após o sonho ter sido finalizado. Essas limitações reduzem a aplicabilidade de técnicas como a eletroencefalografia (EEG) para rastrear a atividade neural durante os diferentes estágios do sono e relacionar os sinais com eventos experienciados nos sonhos.
Sonhos lúcidos foram primeiro mencionados em registros escritos conhecidos pelo filósofo Grego Aristóteles no século IV a.C., e cientistas têm observado esse fenômeno desde a década de 1970 em experimentos sobre o estágio do sono chamado de movimento rápido dos olhos (REM), quando a maior parte dos sonhos ocorrem. Cerca de 1 em cada 2 pessoas já teve pelo menos um sonho lúcido - ou seja, sabe que está sonhando -, e cerca de 10% das pessoas experienciam sonhos lúcidos uma vez ou mais por mês. Apesar de rara, essa habilidade de perceber o sonho durante o sonho - e até mesmo controlar alguns aspectos do sonho - pode ser melhorada com treino (um conceito similar ao do filme Inception, de 2010).
Alguns poucos estudos têm tentado uma comunicação com sonhadores lúcidos usando estímulos como luz, choques e sons para "entrar" no sonho dessas pessoas. Mas essas tentativas têm obtido apenas respostas mínimas desses indivíduos, mesmo sem o envolvimento de transmissões complexas de informação.
Nesse sentido, no novo estudo, quatro grupos independentes de cientistas na França, Alemanha, Holanda e nos EUA tentaram - através de diferentes estratégias - estabelecer uma complexa comunicação de duas vias (diálogo) durante o sonho de 36 voluntários, usando falas e perguntas que os sonhadores não haviam ouvido nos treinamentos. Alguns dos voluntários tinham mínima experiência prévia com sonhos lúcidos, outros eram sonhadores lúcidos mais frequentes, e um era um paciente com narcolepsia que tinha frequentes sonhos lúcidos.
Os pesquisadores primeiro treinaram os voluntários a reconhecerem quando eles estavam sonhando, explicando como os sonhos lúcidos funcionam e demonstrando pistas - sons, luz ou toques com dedos - que seriam apresentadas enquanto estivessem sonhando. A ideia é que essas pistas sinalizariam aos participantes que eles estão sonhando.
Durante os experimentos, à medida que os participantes caíam no sono, os cientistas monitoravam a atividade cerebral, movimento dos olhos e contrações dos músculos faciais - indicadores comuns de sono REM - com capacetes-tocas integrados com eletrodos. De um total de 57 sessões de sono, 6 voluntários sinalizaram que eles estavam tendo sonhos lúcidos em 15 delas. Nesses testes, pesquisadores perguntaram aos sonhadores questões que deveriam ser respondidas com um simples 'sim' ou 'não', ou problemas simples de matemática como '8 menos 6'. Para responder, os voluntários-sonhadores usaram sinais que eles tinham aprendido antes de dormirem, os quais incluíam sorrisos ou franzimento das sobrancelhas, movimento dos olhos múltiplas vezes para indicar uma soma, ou, no laboratório da Alemanha, movimentar os olhos em padrões correspondentes ao código Morse.
No total, os pesquisadores realizaram 158 perguntas aos sonhadores lúcidos, os quais responderam corretamente 18,6% das vezes. Os voluntários deram respostas incorretas a apenas 3,2% das perguntas; 17,7% das respostas não foram claras e 60,8% das perguntas não receberam resposta. Esses resultados mostram que, apesar de difícil, é possível para as pessoas seguir instruções, realizar matemática simples, responder perguntas de sim-ou-não, ou dizer a diferença entre diferentes estímulos sensoriais durante o sonho. Um dos participantes relatou que a pergunta dos pesquisadores entrou no seu sonho como se fosse um narrador de um filme. Isso derruba a ideia comum de que o cérebro durante o sono está desconectado e não-ciente do mundo externo.
Os métodos usados no estudo para o estabelecimento de diálogo durante o sonho podem ser usados em experimentos científicos futuros comparando habilidades cognitivas durante o sono e durante o estado despertado, para o melhor entendimento da relação entre sono e processamento de memórias, e também na avaliação da acuracidade de reportes de sonhos após o despertar. Além disso, fora do ambiente laboratorial, esses métodos podem ser usados para ajudar pessoas de várias formas, como na resolução de problemas durante o sono ou ajudar indivíduos que sofrem com frequentes pesadelos.
(1) Publicação do estudo: https://www.cell.com/current-biology/fulltext/S0960-9822(21)00059-2
