Forte seleção natural nos humanos para o consumo de leite na fase adulta
A persistência da enzima lactase durante a fase adulta, permitindo que boa parte dos humanos modernos (Homo sapiens) hoje consumam leite e seus derivados sem nenhum problema ao longo de toda a vida, representa o mais fortemente selecionado gene único [variantes desse gene] nos últimos 10 mil anos em múltiplas populações humanas. Em um estudo publicado em 2021 no periódico Current Biology (Ref.1), pesquisadores investigaram o material genético de indivíduos da Idade do Bronze e encontraram que o aumento de frequência no alelo associado à persistência da lactase (rs4988235-A) entre os Eurasianos ocorreu de forma dramática nos últimos 3200 anos. A conclusão do estudo foi também corroborada por um estudo subsequente publicado em 2022 no periódico Nature (Ref.5). O consumo de leite além da infância, de alguma forma, se mostrou um fator de sobrevivência extremamente importante para a nossa espécie no território Europeu - espelhando similar fenômeno no continente Africano (evolução convergente).
PERSISTÊNCIA DE LACTASE
Lactose é o carboidrato primário no leite das vacas e requer uma enzima chamada lactase para hidrolisá-la e quebrá-la em duas moléculas menores de carboidratos (galactose e glicose) durante a digestão. A lactase é codificada pelo gene LCT, o qual é dominantemente expresso no intestino delgado. Enquanto que a atividade da lactase é alta durante a infância, essa atividade diminui progressivamente após o desmame em cerca de 66-70% da população mundial. No entanto, em várias populações humanas ao redor do planeta, principalmente na Europa e na África, a atividade da lactase persiste até a fase adulta, com a lactose continuando a ser digerida sem nenhum problema ou dificuldade após a infância. Esse fenótipo é conhecido como 'persistência da lactase' (LP, na sigla em inglês para lactase persistence).
A distribuição global do fenótipo PL varia em diferentes populações, com baixas frequências em pessoas de descendência Asiática e altas frequências (>75%) em um número de populações de descendências Europeia e Africana. Vários polimorfismos nucleotídicos únicos (SNPs) - mutações envolvendo apenas uma letra/base em um gene específico - estão associados com a PL. A SNP rs4988235 é um alelo A dominante responsável pela LP em populações de descendência Europeia. Por outro lado, várias SNPs podem levar à PL em populações de descendência Africana. Ao contrário de indivíduos PL, pessoas sem persistência de lactase (LNP) produzem baixos níveis de lactase e podem se tornar intolerantes à lactose e experienciar desconfortos gastrointestinais seguindo o consumo de laticínios.
Apesar de pessoas intolerantes serem capazes de consumir moderadas quantidades de lactose sem experienciar sintomas (até aproximadamente 15 gramas de lactose, ou cerca de 1 copo de leite), vários indivíduos intolerantes evitam o consumo de laticínios. Importante também realçar que, embora reduzida atividade da enzima lactase afete até ~70% da população mundial, o quadro de intolerância à lactose só é definido quando o consumo de leite e derivados resulta em sintomas gastrointestinais, incluindo diarreia, náusea, estufamento e dores abdominais (Ref.4).
O alelo rs4988235-A parece ter emergido há cerca de 20 mil anos entre os humanos modernos, talvez no Holoceno. Evidências arqueológicas do consumo de leite apontam que a emergência dessa variante genética ocorreu especificamente no Neolítico Inferior na Anatólia, no Levante e no Sudeste Europeu. O mais antigo resíduo orgânico conhecido e relacionado ao consumo de laticínios por humanos data do 7° milênio a.C., no noroeste de Anatólia, e a mais antiga evidência arqueológica de consumo de leite data do 9° milênio a.C. (Ref.5). Evidências nos últimos anos (Ref.3) indicam que o consumo de leite já era essencial há pelo menos 5 mil anos no leste da África - particularmente nas regiões da atual Tanzânia e do Quênia - sugerindo forte seleção positiva em um número de variantes do gene LCT desde essa época.
No caso do alelo rs4988235-A, esse é considerado o traço de gene único nos humanos mais fortemente selecionado (aumento de frequência alélica de geração para geração devido ao mecanismo de seleção natural) nos últimos 10 mil anos. Mas ainda continua incerto quando esse alelo teve sua frequência na Eurásia significativamente aumentada, e quais os mecanismos e eventos evolutivos específicos envolvidos nesse processo (migração, deriva genética, seleção natural, etc.).
BATALHA DE TOLLENSE
Em uma grande batalha que ocorreu durante a Idade do Bronze, no atual território do estado da Pomerania, na Alemanha, em torno de 1200 a.C., inúmeros guerreiros sucumbiram. O sangrento conflito é considerado a mais antiga batalha na Europa conhecida. Os vestígios ósseos dos mortos foram primeiro descobertos na década de 1990. Até o momento, os arqueólogos já desenterraram os esqueletos de mais de 100 indivíduos ao longo do vale de Tollense, muitos dos quais exibindo sinais de um violento combate. Vários milhares de homens são estimados de terem participado do conflito, e muitos estavam a cavalo.
ESTUDO DE 2020
No estudo publicado em 2020, um time internacional de pesquisa, liderado por pesquisadores da Universidade Johannes Gutenberg de Mainz, Alemanha, resolveu investigar a evolução da nossa persistência de lactase na Europa analisando os genomas extraídos dos ossos de 14 guerreiros da batalha de Tollense. Complementando esses dados genômicos, os pesquisadores analisaram o material genético de 18 indivíduos da Idade do Bronze escavados em Mokrin, na Sérvia (~4100 a 3700 anos atrás) e 37 indivíduos do Leste Europeu e da região do Mar Negro-Cáspio antes da Idade do Bronze (~5980 a ~3980 anos atrás).
Os resultados das análises genômicas primeiro mostraram que os indivíduos da Batalha de Tollense representavam uma população desestruturada única do Centro/Norte Europeu, indicando ausência de migrações de outras regiões da Eurásia. Em seguida, os pesquisadores encontraram que a prevalência de persistência de lactase nas três populações estudadas era muito baixa. Entre os indivíduos de Tollense, foi estimado que apenas 1 a cada 8 possuíam o alelo rs4988235-A. Hoje, na mesma região, cerca de 90% dos habitantes possuem esse alelo.
Segundo os pesquisadores, a única explicação para um aumento de frequência tão brusco nesse alelo nos últimos 3 mil anos (cerca de 120-130 gerações) é uma forte e contínua seleção natural atuante. De alguma forma, os humanos na Europa se tornaram muito dependentes do leite oriundo da criação de animais para uma melhor chance de sobrevivência. Os pesquisadores estimaram que em cada geração, os indivíduos com persistência de lactase tinham 6% maior chance de sobrevivência do que aqueles sem esse fenótipo. Essa questão se torna mais intrigante considerando que o avanço nas habilidades de agricultura e o aumento na diversidade alimentar desde o Neolítico deveriam ter fornecido fartas alternativas ao consumo de leite.
Segundo os autores do estudo, além do fato do leite e seus derivados serem uma rica e balanceada fonte de nutrientes, existem vários fatores que talvez expliquem o fomento à forte seleção natural observada. Entre esses fatores, podemos destacar que o leite:
i) pode melhorar a assimilação de cálcio ao suplementar dietas com baixo teor de vitamina-D em altas latitudes (menor incidência solar para a produção endógena dessa vitamina)* (1);
ii) fornece um fluído (hidratação) relativamente livre de patógenos perigosos;
iii) pode suprimir os sintomas da malária através de uma redução na ingestão de ácido p-aminobenzoico;
iv) pode melhorar a saúde intestinal através da modificação benéfica do microbioma no cólon via fornecimento de galactose e galacto-oligossacarídeos;
v) pode evitar diarreia em condições de fome;
vi) pode aumentar a eficiência econômica de caloria para a criação de animais.
(1) Leitura recomendada: Cor da pele, Vitamina D e Evolução
Ainda segundo os autores do estudo, é provável que mais de um desses fatores atuaram em conjunto para favorecer o aumento de frequência do alelo rs4988235-A pelo menos do período da Idade do Bronze até pelo menos a Idade Medieval, acompanhando o substancial aumento populacional nesse intervalo de tempo (!). Associações com fatores de aumento da imunidade contra infecções parecem ser as mais plausíveis, já que os pesquisadores encontraram - entre os mais de 400 loci (regiões genômicas) analisados - que outro alelo também foi significativamente selecionado junto com o rs4988235-A, no gene TLR6: rs5743810 , associado com padrões de reconhecimento de patógenos e resposta imune inata (!).
(!) ESTUDO DE 2022
No estudo publicado em 2022, os pesquisadores investigaram os padrões de consumo de leite por humanos modernos (H. sapiens) na Europa ao longo dos últimos 9 mil anos, combinando dados de DNA antigo, datações de radiocarbono e múltiplas evidências arqueológicas com novas técnicas de modelagem computacional. Eles descobriram que o traço genético de persistência de lactase não era comum até cerca de 1000 a.C., quase 4 mil anos após esse traço ser primeiro detectado (em torno de 4700-4600 a.C.). Os resultados do estudo reforçaram que algum fator "anabolizado" de seleção positiva promoveu uma elevada frequência populacional do alelo rs4988235-A em um relativo curto espaço de tempo entre os Europeus.
Curiosamente, os pesquisadores também encontraram que os Europeus pré-históricos já estavam consumindo grande quantidade de leite há pelo menos 9 mil anos, muito antes da seleção natural começar a atuar sobre o alelo rs4988235-A. Ou seja, à primeira vista, a necessidade de um maior consumo de leite não foi o fator seletivo de maior importância na extensiva fixação do fenótipo LP.
Nesse sentido, os pesquisadores resolveram investigar sequências de DNA antigo pertencentes a >1700 indivíduos pré-históricos Europeus e Asiáticos. Eles encontraram presença do alelo rs4988235-A ao redor de 5 mil anos atrás entre essas sequências, ficando significativa apenas em amostras a partir de ~3 mil anos atrás. Porém, ao usar um robusto modelo estatístico para analisar as mudanças no consumo de laticínios ao longo do tempo, eles não encontraram nenhuma relação sugestiva de relevante fator seletivo que pudesse explicar a forte seleção natural atuante sobre o alelo rs4988235-A.
Então, os pesquisadores resolveram analisar os dados médicos e genéticos de >300 mil indivíduos ainda vivos armazenados no famoso UK Biobank. Os resultados das análises não mostraram nenhuma diferença significativa no status de saúde entre indivíduos intolerantes e tolerantes a lactose que consumiam laticínios. Isso concordou com o consenso na literatura médica de que o consumo leve a moderado de leite e derivados não resulta em prejuízos à saúde de indivíduos intolerantes saudáveis, apenas algum desconforto intestinal em níveis de consumo moderado a alto.
Com essa nova perspectiva, os pesquisadores levantaram o cenário em que indivíduos com sérias condições patológicas ou em períodos de escassez de alimento e água sofreriam seriamente com altas concentrações de lactose não-digerida no intestino, onde diarreias e consequente desidratação poderiam culminar em um grave quadro de saúde sem apropriada intervenção, especialmente em crianças.
Com foco nesse cenário, os pesquisadores aplicaram indicadores de períodos históricos de fome e de expressiva exposição a patógenos no modelo estatístico, explorando o efeito desses fatores quando aliado ao alto consumo de leite. Os resultados das análises finalmente conseguiram extrair um cenário de forte seleção natural favorecendo a persistência e frequência cada vez maior do alelo rs4988235-A.
Segundo os autores do estudo, à medida que as populações humanas cresciam na pré-história, condições sanitárias cada vez mais precárias e disseminações cada vez mais frequentes de doenças, especialmente aquelas de origem animal, tornariam o alto consumo de leite um sério problema para as pessoas sem o fenótipo LP, resultando em um substancial aumento nas taxas de mortalidade desses últimos. Essa situação teria sido exacerbada sob condições de fome, quando as taxas de doenças e de desnutrição aumentavam, fomentando também um maior consumo de leite como uma opção disponível de rica hidratação e de nutrição. Quem não possuía o fenótipo LP seria mais provável de morrer antes de alcançar idade reprodutiva (ex.: maior taxa de mortalidade infantil dirigida por diarreias); quem possuía o fenótipo LP foi favorecido pelo maior consumo de leite, alavancando episodicamente ou continuamente a frequência do alelo rs4988235-A.
Válido mencionar que os autores não excluíram que os fatores propostos por outras hipóteses podem também ter contribuído em paralelo com a rápida fixação do alelo rs4988235-A. Aliás, os resultados das análises também deram suporte limitado para a *Hipótese da Assimilação de Cálcio, apesar de outros possíveis cofatores tornarem incerta a extensão de contribuição desse fator seletivo (ex.: movimentos populacionais de grande escala - intenso fluxo genético - entre diferentes latitudes).
CONSUMO DE LEITE NA ÁFRICA
Enquanto na Eurásia existe um único alelo de significativa importância conferindo o fenótipo LP, nas populações Africanas existem até quatro mutações de importância. Evidência direta de consumo de leite oriundo de caprinos é tão antiga quanto ~6 mil anos atrás na África, e os laticínios se tornaram uma importante fonte nutricional para os Africanos no leste do continente há pelo menos 5 mil anos . E assim como revelado pelo estudo de 2022 na Nature, um estudo de 2021 na Nature Communications (Ref.7) também encontrou que os humanos na África estavam consumindo laticínios mesmo sem as adaptações genéticas permitindo a persistência da lactase na fase adulta. No estudo, os pesquisadores sugeriram que os antigos criadores de animais no território Africano estavam processando o leite (produtos de fermentação como queijos e iogurtes) para reduzir o teor de lactose e torná-lo mais fácil de ser digerido. No geral, os estudos até o momento publicados têm sugerido uma coevolução genética-cultural para explicar o robusto aumento de frequência das mutações associadas ao fenótipo LP na África.
Conteúdo calórico e nutricional fornecido pelo leite, além de uma fonte mais segura de hidratação, pode ter sido necessário para a sobrevivência dos primeiros criadores de animais na África durante expansão ao longo de regiões áridas antes do amplo estabelecimento da agricultura. Aumento de frequência na aridificação e secas após ~4500 anos atrás no Leste Africano pode ter resultado em eventos de bottleneck (2) fomentando rápida seleção para variantes genéticas ligadas ao fenótipo LP entre pequenas populações de criadores de animais, como é evidente em amostras de DNA antigo a partir de 2100 anos atrás. Em tal cenário, uma melhor habilidade de digerir laticínios pode ter aumentado de forma robusta a chance de sobrevivência ao longo da infância e da adolescência, favorecendo a reprodução de indivíduos LP.
(2) Leitura recomendada: O que é a deriva genética?
Hoje, no leste da África, leite e derivados do gado (ou camelos em regiões mais áridas), ovelhas e cabras fornecem até 60-90% do total de calorias (Ref.6). Redução na disponibilidade de leite durante temporadas de seca aumenta vulnerabilidades à desnutrição nas populações dessas regiões e resulta no aumento do consumo de carne e de nutrientes dentro de ossos (medula óssea). É sugerido que forte pressão seletiva resultou no aumento de frequência da variante genética C-14010 para o fenótipo LP nas populações do leste Africano há pelo menos 2700 anos.
CONSUMO DE LEITE NA ÁFRICA
Na Ásia, particularmente na Mongólia, existem múltiplas evidências de que o leite e seus derivados obtidos de cavalos, gado e ovinos têm sido cruciais como alimento há mais de 5 mil anos (Ref.8). E desde pelo menos o ano de ~1270 d.C., o consumo de leite e derivados do iaque doméstico (Bos grunniens) foi parte crucial da dieta da elite do Império Mongol (1206-1368 d.C.) (Ref.9). O iaque doméstico é adaptado às congelantes altitudes alpinas, e capaz de sobreviver a temperaturas abaixo de 40°C negativos consumindo água de neve e gelo e gramíneas, musgos e líquens sob a neve. Os iaques são ainda essenciais para comunidades locais no leste da Eurásia, incluindo transporte, pelagem para tecido e leite para a produção de manteiga e queijo.
REFERÊNCIAS
- Burger et al. (2020). Low Prevalence of Lactase Persistence in Bronze Age Europe Indicates Ongoing Strong Selection over the Last 3,000 Years. Current Biology, Volume 30, Issue 21, P4307-4315.E13. https://doi.org/10.1016/j.cub.2020.08.033
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6723957/
- https://www.pnas.org/content/117/18/9793
- https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0958694623000274
- Evershed et al. (2022). Dairying, diseases and the evolution of lactase persistence in Europe. Nature 608, 336–345. https://doi.org/10.1038/s41586-022-05010-7
- Grillo et al. (2020). Molecular and isotopic evidence for milk, meat, and plants in prehistoric eastern African herder food systems. PNAS, 117 (18) 9793-9799. https://doi.org/10.1073/pnas.19203091
- Bleasdale et al. (2021). Ancient proteins provide evidence of dairy consumption in eastern Africa. Nature Communications 12, 632. https://doi.org/10.1038/s41467-020-20682-3
- Yang, Y. (2020). Dairying transformed Mongolia. Nature Ecology & Evolution, 4(3), 288–289. https://doi.org/10.1038/s41559-019-1082-0
- Ventresca et al. (2023). Permafrost preservation reveals proteomic evidence for yak milk consumption in the 13th century. Communications Biology 6, 351. https://doi.org/10.1038/s42003-023-04723-3