A evolução do nosso sistema imune também fomentou várias doenças antigas e modernas
Em um estudo publicado no periódico Trends in Immunology (1), pesquisadores da Universidade de Radboud descreveram como diferentes ancestralidades impactam a probabilidade de que pessoas de descendência Africana ou Eurasiana desenvolvam doenças imune-relacionadas, além de trazerem evidências mostrando que no sistema imune humano ainda está evoluindo dependendo da localização geográfica ou do estilo de vida.
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As doenças infecciosas, sem sombra de dúvidas, representaram a principal fonte de pressão evolucionária confrontada pela nossa espécie (Homo sapiens). A dispersão de diferentes grupos humanos ao redor do mundo tem exposto cada população a diferentes agentes infecciosos ao longo da nossa histórica, incluindo via interação com outras espécies humanas, fomentando processos de seleção natural. Assim, a adaptação a novos ambientes e suas ameaças patogênicas favoreceram a seleção das variantes genéticas mais benéficas para o hospedeiro. Como resultado, esses agentes infecciosos causaram a expansão de alelos (variantes/mutações de um gene) promovendo proteção ou tolerância a essas doenças. Assim, variações genéticas capazes de serem passadas de gerações para gerações, que aumentavam a sobrevivência frente a perigosos agentes infecciosos, podem ter sido naturalmente selecionadas antes mesmo que os hospedeiros tivessem a chance de se reproduzirem.
O genoma humano apresenta mais de 5 mil loci (regiões genéticas nos cromossomos) com traços de pressão seletiva. Esse grupo inclui mais de 300 genes imune-relacionados com variações funcionais entre populações e que provavelmente estão por trás das diferentes repostas imunes a doenças diversas reportadas hoje. Além de seleção natural, outros mecanismos evolucionários, como deriva genética (2), enormemente influenciaram as frequências de variantes genéticas encontradas dentro de populações diversas ao longo do planeta. Grandes declínios populacionais (bottlenecks) gerados justamente por doenças infecciosas podem estar por trás de derivas genéticas (mudanças nas frequências de alelos devido a pura chance).
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() Para mais informações, acesse: O que é a deriva genética?
Uma das melhores defesas do corpo contra doenças infecciosas é representada pelos processos inflamatórios. No estudo, os pesquisadores compilaram e analisaram dados genéticos imunológicos e microbiológicos acumulados nas últimas décadas, identificando como o DNA de diferentes comunidades comumente infectadas com doenças bacterianas ou virais foi alterado, subsequentemente fomentando mecanismos de inflamação. Enquanto essas mudanças genéticas tornam mais difícil para certos patógenos infectarem essas comunidades, elas também estão associadas com a emergência - ao longo do tempo - de novas doenças inflamatórias, como a doença de Crohn, Lúpus e doença inflamatória intestinal. Outras variantes genéticas que construíram nosso atual sistema imune também trouxeram custos diversos. Ou seja, via seleção natural, ocorre um balanço de benefícios e de prejuízos. E hoje nós estamos sofrendo ou sendo beneficiados dessas defesas construídas no nosso DNA pelos nossos ancestrais, especialmente porque estamos vivendo muito mais (expectativa de vida) do que durante a maior parte - esmagadora, diga-se de passagem - da nossa evolução, desde que emergimos na África há cerca de 300 mil anos.
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Por exemplificar, podemos citar o parasita da malária Plasmodium sp. ,o qual tem infectado populações Africanas por centenas de milhares de anos. Nesse cenário, os processos evolucionários eventualmente selecionaram indivíduos com variantes genéticas favorecendo resistência a infecções. Podemos citar a existência de mutações no gene da Hemoglobina-B (HBB) e no gene da Hemoglobina-C (HBC), resultantes de seleção natural contra a malária. A variante HBC, por exemplo, está presente em alta frequência em populações do Oeste Africano, e está associada com uma diminuição de 30-93% no risco de desenvolver a doença.
Outra doença comum que acompanha nossa espécie há um longo tempo é a Tuberculose, e um dos seus principais agentes patogênicos é a bactéria Mycobacterium tuberculosis, a qual vêm causando infecções no H. sapiens e ancestrais há pelo menos 500 mil anos. Várias variantes genéticas foram selecionadas para aumentar a imunidade contra o M. tuberculosis, incluindo alelos para o receptor de vitamina D (VDR), proteína macrófaga resistência-associada 1 (SLC11A1) e citocinas como IL-12 E IFN-gama. Como a bactéria vem interagindo com as populações na África há muito mais tempo, indivíduos com ancestralidade Africana apresentam uma maior frequência de variações genéticas nesse sentido do que outras populações fora do continente Africano, incluindo alelos no gene codificante para o receptor tipo-Toll 6 (TLR6), este o qual media respostas celulares para lipoproteínas bacterianas.
E como já mencionado, essas seleções também tiveram consequências negativas. Como efeito colateral da maior frequência de certos alelos, populações Africanas modernas ficaram propensas a desenvolver doenças cardiovasculares, como aterosclerose, em idades mais avançadas. A maior expressão de citocinas e quimiocinas (moléculas pró-inflamatórias) também facilita o surgimento de doenças devido a um super-estímulo de respostas inflamatórias. Descendentes de populações Africanas geralmente apresentam uma maior susceptibilidade a uma variedade de síndromes autoimunes, como carcinomas associados a inflamações, lúpus, asma, e esclerose múltipla, doenças com risco três vezes maiores entre Africanos do que Europeus.
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Saindo da África, não foi apenas nossa espécie que se aventurou para fora do continente-mãe. Espécies muito mais antigas do nosso gênero, como o Homo ergaster, Homo erectus e Homo heidelbergensis também migraram para fora do continente Africano, se espalhando pela Europa e pela Ásia. A partir dessas populações, os Denisovanos e os Neandertais evoluíram, e nossos ancestrais H. sapiens na Eurásia adquiriram genes de resistência a doenças diversas desses humanos arcaicos via fluxo genético por hibridização. Aliás, cerca de 1-4% do genoma de populações modernas na Ásia e na Europa são derivadas dessas espécies extintas (3). Assim, adaptações evolutivas adquiridas pelos Neandertais durante seus ~600 mil anos de ocupação na Eurásia foram transmitidos (introgressos) no nosso DNA. Variantes incluem a expressão de maior resistência contra o HIV-1 e contra infecções por bactérias estafilococos, mas ganhamos também uma maior vulnerabilidade ao desenvolvimento de alergias, asma e febre do feno (alergia a florescência - em específico ao pólen - na primavera).
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MIGRAÇÃO: A história de êxodo da humanidade (gênero Homo) começou há quase 2 milhões de anos com a migração do H. erectus da África para a Eurásia. A partir desse evento, populações humanas relativamente isoladas evoluíram separadamente em diferentes continentes, levando à emergência de diferentes espécies humanas, como os Neandertais na Europa, Denisovanos na Ásia, e, mais tarde, os humanos modernos (H. sapiens) na África. O H. sapiens primeiro colonizou grandes áreas do continente Africano há cerca de 300 mil anos, se espalhando em seguida para o Oriente Médio em algum ponto entre 150 mil e 80 mil anos atrás, e migrou através da Eurásia, alcançando o sudeste Asiático há cerca de 60 mil anos e a Austrália há cerca de 55 mil anos. Humanos modernos ancestrais na Ásia (Norte-Leste) eventualmente atravessaram as águas congeladas do Estreito de Bering em duas ondas migratórias distintas para o continente Americano há aproximadamente 20 mil anos, e alcançando a América do Sul nos próximos 5 mil anos.
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(3) Leitura complementar:
É válido mencionar também que as populações Americanas, descendentes de Asiáticos que não tiveram contato com os Neandertais e com os humanos modernos na Europa, acabaram sofrendo drásticas reduções populacionais quando entraram em contato com os Europeus colonizadores há pouco mais de cinco séculos, os quais trouxeram diversas doenças infecciosas antes nunca expostas a esses nativos. Essas doenças se espalharam rápido, como a varíola e o sarampo, causando taxas de mortalidade acima de 90%. Os colonizadores também sofreram grandes baixas devido a doenças tropicais como febre tifoide e febre amarela. Esses eventos dispararam também marcantes processos evolutivos que são hoje observados entre as populações nativas.
EVOLUÇÃO E MICROBIOMA
Nosso trato gastrointestinal fornece residência tanto para microrganismos potencialmente patogênicos quanto para microrganismos benéficos, em um total que abrange em torno de 10 milhões de diferentes genes microbianos no microbioma fecal humano. E esse microbioma evoluiu junto com a nossa espécie, sendo submetido também a pressões evolucionárias. E cada vez mais os cientistas estão descobrindo ligações entre o nosso microbioma e a nossa imunidade.
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Nesse sentido, nosso sistema imune também continua evoluindo por causa das mudanças de estilo de vida. Tribos Africanas que ainda se engajam em coleta e caça possuem uma maior diversidade bacteriana do que Americanos-Africanos que comem alimentos industrializados. Mudanças nos padrões de higiene nos últimos dois séculos otimizaram drasticamente a sanitização, água de consumo e tratamento de lixo, e levaram à redução na exposição a patógenos em relação ao passado. À medida que os humanos passam a se alimentar cada vez mais de alimentos processados e utilizarem padrões cada vez mais estritos de higiene, nossos corpos vão se adaptando, e acabam desenvolvendo o que os cientistas chamam de 'doenças de civilização'.
A redução na diversidade da microbiota facilitou a emergência de doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, e desordens autoimunes, as quais estão cada vez mais comuns dentro de comunidades sob um estilo de vida Ocidental-industrializado e bem incomuns entre sociedades de caçadores-coletores
Além do microbioma bacteriano, nós também evoluímos uma relação bem íntima com os vírus, os quais impactaram na evolução e maturação do sistema imune humano. Aproximadamente 8% do genoma humano é composto de retrovírus endógenos (ERVs) (4), sequências derivadas de antigas infecções retrovirais que se tornaram permanentemente inseridas em diferentes regiões do genoma humano. Os ERVs, por exemplo, atuam de forma crucial na indução de respostas imunes IFN-dependentes, e a remoção de um ou mais desses elementos virais do DNA em linhagens celulares drasticamente reduz a capacidade de combater vírus como o vaccinia. Essas sequências retrovirais também podem influenciar a severidade de infecções causadas por outros vírus.
(4) Leitura recomendada: Como nova informação genética é gerada durante o processo evolutivo?
EVOLUÇÃO E MEDICINA
Os autores do novo estudo concluíram que está claro que processos evolucionários podem engatilhar a fixação de variações genéticas que aumentam (ou diminuem) nossas defesas contra infecções, mas podem também levar a um maior risco de desenvolvimento de certas doenças autoimunes nas quais ligantes endógenos podem fomentar danos em tecidos e inflamação. Respostas imunes nos humanos foram moldadas por pressões evolucionárias exercidas por bactérias, protozoários, fungos e vírus ao longo da nossa história evolutiva. Um amplo espectro de variações genéticas e funções imunes em diferentes populações favorece a adaptação a novos ambientes e aumenta as chances de sobrevivência do H. sapiens contra potenciais pandemias. Entender melhor a variabilidade genética do nosso sistema inume em diferentes populações e em diferentes regiões geográficas, e dentro de um contexto evolutivo, pode permitir grandes avanços na medicina.
(1) Publicação do estudo: Cell
A evolução do nosso sistema imune também fomentou várias doenças antigas e modernas
Reviewed by Saber Atualizado
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janeiro 02, 2020
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