Mais de 80% das grávidas no terceiro trimestre exibindo deficiência em ferro, alertou estudo Irlandês
Em um estudo prospectivo publicado no periódico American Journal of Clinical Nutrition (Ref.1), pesquisadores reportaram que 4 em cada 5 mulheres grávidas na Irlanda desenvolvem deficiência em ferro no terceiro semestre de gestação. O achado levanta grande preocupação já que as participantes do estudo eram de baixo risco para esse tipo de deficiência nutricional, com acesso a suplementos alimentares e, em geral, saudáveis. O estudo, liderado por pesquisadores Irlandeses, é o maior do tipo já feito e contou com uma parceria internacional de especialistas. Deficiência de ferro durante a gravidez está ligada a um risco aumentado de complicações tanto para a mãe quanto para o feto, incluindo problemas de neurodesenvolvimento no bebê.
"Deficiência de ferro é a deficiência em micronutrientes mais comum no mundo, mas é frequentemente pensada ser um problema de importante gravidade apenas em regiões pobres," disse em entrevista a autora principal do novo estudo, Dra. Elaine McCarthy, da Universidade de Cork, Irlanda (Ref.2). "Nosso estudo claramente ilustra que deficiência de ferro é extremamente comum entre mulheres grávidas, mesmo em populações geralmente saudáveis."
Deficiência de ferro é a deficiência nutricional mais comum no mundo, e os sintomas associados são sutis e não específicos e frequentemente só se tornam aparentes com anemia severa. Ferro atua de forma importante para várias funções biológicas, em especial no transporte de oxigênio no sangue (constitui o sítio ativo das hemoglobinas). Deficiência de ferro tem sido associada com a síndrome das pernas agitadas, redução na capacidade física, problema na função cognitiva, falha cardíaca, mortalidade por todas as causas e outras efeitos adversos independentes da anemia. Deficiência mais severa pode causar anemia. Bebês e crianças, grávidas e pessoas com certas condições, como anemia, doença crônica e falha cardíaca, possuem taxas mais altas de deficiência de ferro.
Nos EUA, deficiência de ferro já representa um considerável problema de saúde pública, afetando grande parte da população adulta mesmo na ausência de anemia, falha cardíaca ou doença crônica renal. Estima-se que deficiência de ferro absoluta afete 14% dos adultos no país - e mais frequentemente afetando mulheres jovens (1) - enquanto deficiência de ferro funcional afeta ambos os sexos de todas as idades (Ref.3).
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> Deficiência absoluta de ferro resulta de uma redução severa ou ausência de reservas de ferro no corpo. Deficiência funcional de ferro ocorre na presença de reservas adequadas de ferro mas disponibilidade insuficiente de ferro.
Leitura complementar:
> As fontes mais ricas de ferro heme [forma mais biodisponível de ferro] na dieta incluem carnes diversas. Fontes de ferro não-heme incluem grãos de feijão, sementes como nozes, vegetais (ex.: couve, espinafre, etc.) e produtos fortificados. Para mais informações sobre deficiência de ferro e fatores que afetam sua assimilação pelo corpo a partir da dieta, fica a sugestão de leitura: Café e chá devem ser tomados antes ou depois das refeições?
> Anemia é a redução da massa de hemoglobina e, portanto, da massa eritrocitária. Os dois tipos mais prevalentes de anemia são a ferropriva e a decorrente da doença inflamatória. A anemia ferropriva - caracterizada por diminuição de ferritina no sangue - decorre do esgotamento das reservas de ferro, na maioria das vezes, por perda crônica de sangue, por exemplo, por fluxo menstrual aumentado e sangramento por trato gastrointestinal.
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Durante a gravidez, o corpo feminino aumenta em quase 10x o requerimento de ferro para suportar o desenvolvimento fetoplacentário e as necessidades maternas, tornando deficiência nesse micronutriente comum entre as grávidas. A habilidade de atender a essa enorme demanda de ferro depende das reservas no corpo ao início da gravidez e das adaptações fisiológicas que aumentam a absorção de ferro à medida que a gravidez progride. Infelizmente, adaptações fisiológicas nem sempre são suficiente para atender a demanda, e é estimado que 50% das mulheres iniciam a gravidez com escassas reservas de ferro, especialmente mulheres jovens - onde deficiência de ferro pode alcançar taxas acima de 40% mesmo em regiões de alta renda.
Anemia durante a gravidez está associada com um risco aumentado de eventos maternos e perinatais adversos, incluindo depressão pós-parto, hemorragia pós-parto, baixo peso no nascimento e pequeno para a idade gestacional de nascimento (2). Além disso, deficiência de ferro na gestação, mesmo sem anemia, pode comprometer a acreção fetal de ferro no útero, resultando em consequências deletérias de neurodesenvolvimento de longa persistência - envolvendo cognição, comportamento e habilidades motoras - e manifestação precoce de deficiência de ferro no bebê após o parto.
Leitura recomendada:
E mesmo quando avaliação médica é conduzida em grávidas para análise do estado de hemoglobina circulante, a técnica quantitativa usada pode ser insuficientes para detectar deficiência em ferro. Na prática clínica, por exemplo, hemoglobina é frequentemente o único parâmetro utilizado para avaliar o status de ferro nas mulheres grávidas. Hemoglobina, no entanto, apenas fornece um indicativo de anemia. Como resultado, eventos adversos podem afetar a mãe e o bebê antes do quadro de deficiência em ferro avançar para anemia.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda como indicador de deficiência de ferro um nível de ferritina inferior a 15 μg/L, mas agências de saúde Britânicas recentemente sugeriram um valor de <30 μg/L. Outros parâmetros têm sido também sugeridos, como nível de sTfR (receptor solúvel da transferrina), dado que os níveis de ferritina são afetados por processos inflamatórios no corpo. O sTfR - cuja síntese é regulada pelos níveis de ferro teciduais - trata-se de um indicador do estado do ferro funcional, já que não sofre as influências sistêmicas a que estão sujeitos o ferro sérico e a ferritina.
No novo estudo, os pesquisadores analisaram de forma prospectiva 641 pessoas do sexo feminino na Irlanda que estavam grávidas e tiveram um parto de sucesso pela primeira vez. Amostras de sangue foram coletadas das participantes na 15°, 20° e 33° semanas de gestação para a determinação do status de ferro e do status inflamatório do corpo. Dentro de 72 horas de parto, informações sobre a gravidez, trabalho de parto e o bebê foram obtidas das mães através de uma entrevista com a parteira responsável em cada caso.
As análises das amostras sanguíneas coletadas mediram as concentrações de ferritina, sTfR, proteína C-reativa (CRP) e glicoproteína-α (AGP). Múltiplas definições para deficiência de ferro durante a gravidez foram adotadas para a ferritina, incluindo os limites de <12 μg/L, <15 μg/L e <30 μg/L. Para o caso específico do sTfR, concentração inferior a 4,4 mg/L foi adotada para deficiência de ferro. Para deficiência usando o valor de ferro total no corpo (TBI) - calculado a partir dos valores de sTfR e de ferritina -, valor adotado foi de <0 mg/Kg. Valores de >5 mg/L [CRP] e de >1 g/L [AGP] foram usados para identificar inflamação.
Com base nesses parâmetros, os pesquisadores identificaram que as taxas de deficiência em ferro mostraram-se elevadas em grande parte das grávidas desde o início da gestação, partindo de quase 21% no primeiro trimestre e alcançando quase 84% no terceiro trimestre. Em outras palavras, no último trimestre de gravidez, mais de 4 em cada 5 grávidas exibiam deficiência de ferro. E mesmo quando os pesquisadores utilizaram o parâmetro isolado e controverso de ferritina <15 μg/L, 1 em cada 2 grávidas (50%) continuavam sob status de deficiência de ferro no terceiro trimestre.
Essas taxas espantam considerando que quase 75% das grávidas no estudo estavam também tomando suplementação diária de ferro (dose de 15-17 mg/dia de ferro) e eram, no geral, saudáveis.
Nesse último ponto, suplementos alimentares contendo ferro (principalmente multivitamínicos) antes e durante a gravidez estavam associados com um risco reduzido de deficiência ao longo da gestação, incluindo no terceiro trimestre.
Os achados do estudo e outras evidências prévias acumuladas reforçam que o rastreamento de rotina para deficiência em ferro deveria ser realizado em todas as mulheres em idade reprodutiva e também naquelas grávidas desde o início da gestação, independentemente da presença ou não de sintomas sugestivos de anemia e afins. Os autores do estudo sugeriram que o ideal seria garantir valores de ferritina de >60 μg/L no estágio inicial de gestação. Ultimamente, o estudo realça a importância de uma boa alimentação durante a gravidez.
REFERÊNCIAS
- McCarthy et al. (2024). The American Journal of Clinical Nutrition. Longitudinal evaluation of iron status during pregnancy: a prospective cohort study in a high-resource setting. https://doi.org/10.1016/j.ajcnut.2024.08.010
- https://www.ucc.ie/en/news/2024/4-in-5-pregnant-women-in-ireland-are-iron-deficient-by-third-trimester-a-research-study-reveals.html
- Tawfik et al. (2024). Absolute and Functional Iron Deficiency in the US, 2017-2020. JAMA Network Open, 7(9):e2433126. https://doi.org/10.1001/jamanetworkopen.2024.33126
- https://revistas.usp.br/rmrp/article/view/156726