Anêmona-do-mar traz luz sobre origem evolutiva dos neurônios
Neurônios são células altamente especializadas presentes em quase todos os animais, mas a origem evolucionária dessas células e a relação destas com outros tipos celulares não é ainda bem entendida. Em um estudo publicado esta semana no periódico Science Advances (Ref.1), pesquisadores usaram a espécie de anêmona-do-mar Nematostella vectensis como um modelo ancestral dos primeiros animais que evoluíram no planeta visando entender melhor a evolução dos neurônios. Através de experimentos genéticos, eles mostraram que o fator de transcrição NvInsm1 unindo células secretórias e neurônios nessa espécie traça uma origem comum a partir de células progenitoras NvSoxB(2)-positivas. Os achados do estudo reforçaram a relação evolucionária próxima entre células secretórias e neurônios, suportando também a hipótese de que neurônios e células endócrinas dos atuais animais evoluíram de células primordiais secretórias-sensoriais.
Neurônios são células com uma alta diversidade de propriedades morfológicas, moleculares e fisiológicas, representando os constituintes principais do sistema nervoso, especialmente do cérebro. A característica comum dos neurônios é a presença de estruturas subcelulares que permitem comunicação intercelular rápida e precisa. Vários neurônios possuem longos processos, coletivamente chamados de 'neuritos', que são usados para a propagação de excitação elétrica. Esses sinais elétricos ativam a liberação do conteúdo de pequenas vesículas seja de uma maneira altamente específica em sinapses químicas ou com baixa resolução temporal e espacial via neurossecreção. Os sofisticados maquinários que permitem a condutância elétrica e liberação vesicular lembram aqueles encontrados em outros tipos celulares.
Por exemplo, a excitabilidade elétrica e condução nas células musculares são baseadas nos mesmos tipos de canais de cálcio e de sódio encontrados em neurônios, enquanto que a liberação de vesículas sinápticas envolvem várias proteínas associadas com a vesícula e a membrana plasmática, respectivamente, que também funcionam na liberação de vesículas de outras células endócrinas e secretórias não-neuronais (ex.: células pancreáticas, as quais liberam insulina e glucagon). A evolução dos neurônios, portanto, provavelmente é derivada de diferentes módulos celulares pré-existentes unidos eventualmente em um único tipo celular.
Neurônios de animais vertebrados originam do ectoderma (tecido externo embrionário), enquanto que as células endócrinas do sistema gastrointestinal se originam do endoderma (tecido embrionário mais interno). Apesar dessa substancial diferença, existem várias similaridades no desenvolvimento de neurônios e de células endócrinas. Ambas envolvem o uso de moléculas sinalizadoras e fatores de transcrição como a sinalização Notch, genes soxB, e genes bHLH das famílias atonais, neurogeninas, e complexo achaete-scute. E um mais notável exemplo nesse último ponto é o caso do fator de transcrição Insm1 ou IA-1.
Durante o desenvolvimento embriônico de ratos, o gene Insm1 é expresso amplamente no sistema nervoso central e periférico, no estômago, intestino, pâncreas, timo, tireoide e glândulas adrenais. Esse fator é requerido para o desenvolvimento de neurônios ao longo do cérebro desses animais e de células derivadas da crista neural da linhagem simpática-adrenal no sistema nervoso periférico. Além disso, o Insm1 controla o desenvolvimento de células endócrinas no pâncreas, pulmão, intestino e glândula pituitária. Esse amplo espectro de funções fornece pistas adereçando a relação evolucionária entre células secretórias e neurais.
Os cnidários (Filo Cnidaria), como anêmonas, corais e águas-vivas, representam o clado irmão do clado Bilateria (animais com simetria bilateral) e derivam do mais antigo grupo de animais cujo sistema nervoso compartilha uma origem comum com aquele dos bilaterianos. Existem dois principais grupos de cnidários - antozoanos e medusozoanos - com formas corporais fixas (pólipos) presentes nos dois grupos e a forma de medusa (estágio pelágico do ciclo de vida, com mobilidade) presente apenas nos medusozoanos. Pólipos pode ser descritos como um tubo com uma abertura, a qual é cercada por tentáculos usados para a captura de presas. Independentemente da densidade de neurônios e de neuritos, o sistema nervoso dos cnidários pólipos é melhor descrita como uma rede nervosa com ausência de uma centralização cerebral (ou seja, possuem um sistema nervoso sem cérebro).
Três classes gerais de células neurais são distinguidas nos cnidários: neurônios sensoriais/motor-sensoriais, gânglios (potencialmente equivalentes a interneurônios) e cnidócitos (células especializadas em ferroar, "queimar", a pele de quem entra em contato com os tentáculos desses animais).
No novo estudo, os pesquisadores resolveram investigar os cnidários na busca por elementos ancestrais associados à origem dos neurônios. No caso, foi escolhido como modelo experimental a anêmona Nematostella vectensis, membro de um clado de animais que se separou da linhagem bilateriana (ex.: cordados, artrópodes, nematodes e anelídeos) há mais de 600 milhões de anos. Em específico, eles estudaram o papel do fator NvInsm1, cujo gene é ortólogo no N. vectensis em relação ao fator Insm1 nos vertebrados (!), e mais similar à versão humana e de ratos do que a versão na mosca Drosophila melanogaster e no verme Caenorhabditis elegans.
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(!) Ortólogo faz referência a genes que derivaram de um ancestral em comum ao longo dos eventos de especiação, produzindo tipicamente proteínas muito similares estruturalmente e funcionalmente.
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Através de experimentos de edição genética visando reguladores do fator NvInsm1 e deleção do gene NvInsm1, os pesquisadores mostraram que os neurônios e células secretórias/glandulares no N. vectensis se originam de um grupo comum de células progenitores caracterizadas pela expressão do fator NvSoxB(2), e que o desenvolvimento dessas células especializadas envolvem o fator Nvinsm1, provavelmente no programa inicial de diferenciação pós-mitótica. Entre as células derivadas, o gene NvInsm1 mostrou estar expresso em células sensoriais, gânglios e células secretórias. Os achados, junto com as evidências até o momento acumuladas sobre o desenvolvimento diferencial de diferentes células nos animais bilaterianos, suportam a hipótese de que as células secretórias e os neurônios compartilham uma origem evolucionária comum ao longo da diversificação do Reino Animal, ligando animais com sistemas nervosos primitivos como anêmonas até animais com complexos cérebros, como mamíferos.
REFERÊNCIA
- Tournière et al. (2022). Insm1-expressing neurons and secretory cells develop from a common pool of progenitors in the sea anemone Nematostella vectensis. Science Advances, Vol 8, Issue 16. https://doi.org/10.1126/sciadv.abi7109
- Layden et al. (2016). The rise of the starlet sea anemone Nematostella vectensis as a model system to investigate development and regeneration. Wiley interdisciplinary reviews. Developmental biology, 5(4), 408–428. https://doi.org/10.1002/wdev.222