Seleção natural nos humanos disparada pela peste bubônica, aponta estudo
Analisando os vestígios de 36 vítimas da peste bubônica de uma cova coletiva do século XVI na Alemanha, pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade do Colorado, EUA, em parceria com o Instituto Max Planck (Alemanha), encontraram a primeira forte evidência de processos evolucionários adaptativos na nossa espécie (Homo sapiens) orientados pela doença, e que podem ter conferido imunidade para as gerações futuras de pessoas na região afetada pela epidemia. Os achados foram reportados e descritos no periódico Molecular Biology and Evolution (1).
Ao longo da sua história evolutiva, os humanos modernos (H. sapiens) têm provavelmente experienciado múltiplos grandes episódios de doenças infecciosas. Um exemplo notável envolvendo um patógeno de excepcional virulência e letalidade foram as pandemias e surtos epidêmicos causados pela bactéria Yersinia pestis, responsável pela Peste (em particular a peste bubônica, transmitida a partir de pulgas) (!). Estudos genômicos nos últimos anos têm mostrado que a Peste assolou a Europa desde o Neolítico Tardio - há cerca de 5 mil anos - até o século XVIII. O primeiro registro histórica de uma pandemia da doença data do século VI (Peste Negra), na chamada Peste de Justiniano, e a mais marcante e mortal ocorreu durante o século XIV, quando 35-60% da população Europeia foi dizimada em um período de apenas cinco anos (!).
(1) Para mais informações, acesse: Médicos da peste realmente existiram?
Patógenos e surtos epidêmicos associados exercem pressão seletiva sobre populações humanas, e quaisquer mudanças nas frequências de alelos resultantes podem ser especialmente evidentes para genes envolvidos na imunidade. Isso é especialmente válido para doenças muito virulentas e transmissíveis, como a peste, as quais representam forte fator seletivo ao causar um grande número de mortes a nível populacional. Indivíduos com o sistema imune mais apto a lidar com a doença acabam sobrevivendo e passando para frente seus genes para a próxima geração, aumentando a frequência de alelos (variantes genéticas) protetores.
No novo estudo, os pesquisadores resolveram investigar se os surtos de peste também foram capazes afetar de forma significativa o curso evolucionário dos humanos na Europa. Para isso, eles extraíram DNA genômico de 36 indivíduos que provavelmente morreram da peste na cidade de Ellwangen, no Sul da Alemanha, durante o século XVI. Os indivíduos estavam enterrados em uma grande cova comunitária, e em uma região atingida pela peste bubônica nos séculos XVI e XVII. Em seguida, após sequenciar o material genômico de cada indivíduo, eles compararam as frequências de alelos associados ao sistema imune com um grande banco de dados englobando genes humanos imune-relacionados e com 50 indivíduos representando a atual população na cidade de Ellwangen. Foram englobados 488 genes do sistema imune humano, incluindo o locus KIR e os seis principais genes HLA classe I e classe II.
Apesar dos pesquisadores terem observado uma predominante estabilidade genética de genes imunes nos humanos da Europa Central ao longo de pelo menos cinco séculos, eles também encontraram distintas mudanças nas frequências de alelos nos genes HLA e em dois outros genes que codificam componentes da imunidade inata. Nesse último caso, foram observadas fortes diferenças na frequência de alelos associados a polimorfismos de nucleotídeo único localizados nos genes FCN2 e NLRP14. Porém, os pesquisadores não encontraram clara evidência de que seleção positiva contribuiu para essas diferenças.
Ambos os genes codificam receptores (NLRP14 e Ficolina-2) de reconhecimento de padrões que se ligam a componentes específicos patógenos-derivados para iniciar as respostas inflamatórias. O receptor NLRP14 faz isso de forma intracelular e o receptor Ficolina-2 - através de fagocitose de bactérias patogênicas - faz isso de forma extracelular.
Em relação aos alelos HLA os pesquisadores encontraram candidatos para seleção natural relativa a respostas imunes adaptativas. Moléculas classe I e II de HLA são componentes da superfície celular que se ligam a peptídeos derivados de proteínas intracelulares e extracelulares, respectivamente. Para engatilhar e orientar a resposta imune adaptativa, esses peptídeos são apresentados pelas moléculas de HLA às células-T. Nesse sentido, o grupo alélico HLA-DRB1*13 aumentou em frequência de 5,6% nas vítimas da peste para 17% nos indivíduos da atual cidade de Ellwangen e para 12% na população Alemã como um todo, sugerindo proteção anticorpo-baseada da peste para indivíduos com esse alótipo.
De fato, o grupo alélico HLA-DRB1*13 está associado com resistência à bactéria Mycobacterium tuberculosis, a qual, de forma similar à Y. pestis, pode invadir e sobreviver dentro de macrófagos. Macrófagos expressam altos níveis de HLA classe II e são células especializadas na função de apresentar peptídeos às células-T CD4+ para iniciar a produção de anticorpos. As moléculas de HLA classe II podem apresentar antígenos de patógenos intracelulares, como a M. tuberculosis. Portanto, o mesmo caminho imune adaptativo engatilhado pelo HLA-DRB1*13 que fornece resistência à M. tuberculosis, pode também fornecer resistência à Y. pestis.
Outra significativa mudança na frequência de alelos foi observada no grupo alélico HLA-C*06:02, associado à atividade das células exterminadoras do sistema imune. Porém, nesse caso, foi observada uma marcante redução na frequência de alelos na atual população de Ellwangen em relação aos indivíduos do século XVI. Ficou sugerido, portanto, que excessos no ataque das células exterminadoras aos patógenos pode ter sido um fator de agravamento da doença.
Mais estudos de maior porte serão necessários para corroborar esses achados, confirmando ou não atuação de seleção positiva nesses genes fomentada pela peste.
(1) Publicação do estudo: https://academic.oup.com/mbe/advance-article/doi/10.1093/molbev/msab147/6277411