Humanos possuem o potencial de se transformarem em animais peçonhentos
Sistemas orais de produção de veneno evoluíram múltiplas vezes em inúmeros vertebrados, possibilitando a exploração de nichos predatórios únicos, mas a emergência e trajetória evolutiva dessa arma de defesa e de ataque ainda permanece pouco esclarecida. Esse limitado conhecimento se deve principalmente ao fato do maior foco da comunidade científica nas proteínas constituintes das toxinas liberadas e o potencial farmacológico dessas últimas, e não tanto nos genes envolvidos na produção e regulação dessas toxinas. Agora, em um estudo publicado no periódico PNAS (1), pesquisadores encontraram que as bases genéticas para a evolução da produção oral de venenos comuns em répteis como cobras estão também presentes nos mamíferos, incluindo humanos, evidenciando uma profunda homologia a nível de arquitetura regulatória. E mais: o estudo trouxe a primeira sólida evidência ligando nossas glândulas salivares com as glândulas de produção de veneno das cobras.
Peçonhas são basicamente um coquetel de proteínas que os animais usam como arma para imobilizar e matar presas, assim como para a autodefesa. Em estudos prévios, cientistas têm focado em genes que codificam proteínas constituintes da mistura tóxica inoculada via mordida (ex.: injeção por presas) por animais peçonhentos. No entanto, várias das toxinas atualmente encontradas na peçonha desses animais, especialmente cobras, foram incorporadas após o sistema oral de peçonha ter se estabelecido.
Nesse sentido, no novo estudo, os pesquisadores focaram em genes que potencialmente estavam presentes antes da origem da peçonha, buscando por grupos genéticos trabalhando e fortemente interagindo junto com os genes diretamente envolvidos na produção de veneno. Para isso, eles investigaram glândulas de veneno coletadas da espécie de víbora Asiática Protobothrops mucrosquamatus. Os pesquisadores identificaram cerca de 3 mil desses “genes cooperativos” – coletivamente chamados no estudo de “rede de metapeçonha” – e encontraram que eles realizam importantes funções na proteção de células contra o estresse causado pela produção excessiva de proteínas. Esses genes também se mostraram cruciais em regular modificação e dobramento de proteínas.
Quando as proteínas são sintetizadas pelo maquinário celular, as longas cadeias de aminoácidos constituintes precisam adquirir específicas estruturas tridimensionais (dobramentos) a fim dessas proteínas cumprirem efetivamente suas funções previstas. Para garantir o correto dobramento das várias proteínas compondo as misturas tóxicas presentes nas peçonhas das cobras, é necessário um robusto sistema regulatório.
No próximo passo do estudo, os pesquisadores analisaram comparativamente vários genomas ao longo do Reino Animal, incluindo mamíferos como cães, chimpanzés, ratos e humanos, e encontraram que os mamíferos também possuem versões similares do complexo sistema regulatório das proteínas associadas com toxinas (rede de metapeçonha).
Em específico, quando os pesquisadores analisaram em maiores detalhes os tecidos das glândulas salivares de mamíferos, eles encontraram que os genes associados tinham um padrão similar de atividade àquele observado em glândulas de veneno das cobras. Eles concluíram, portanto, que as glândulas salivares em mamíferos e as glândulas de veneno compartilham um ancestral comum em termos de estrutura genética básica e central (núcleo regulatório) que foi conservado desde que as duas linhagens se dividiram centenas de milhões de anos atrás.
Enquanto as cobras, por exemplo, acabaram acumulando novos genes para a produção de numerosas proteínas tóxicas (mistura secretada altamente concentrada) reguladas pela rede de metapeçonha, mamíferos como o musaranho – pequenos mamíferos da família Soricidae – produzem apenas alguns tóxicos (e potentes) compostos proteicos nas glândulas salivares partindo de uma rede regulatória parecida, mas resultando em uma mistura final ainda muito similar à saliva (ex.: muito diluída). Além disso, famílias de genes nas redes de metapeçonha das cobras peçonhentas sofreram um maior processo de expansão, e evoluíram em significativas maiores taxas do que outras linhagens, como mamíferos.
O caso dos musaranhos, portanto, não é apenas uma aleatoriedade fantástica do percurso evolutivo. Os musaranhos – e também os solenodontes (gênero Solenodon), outro mamífero peçonhento – desenvolveram um sistema oral de peçonha com base nas glândulas salivares usando os mesmos blocos moleculares das cobras, ou seja, um exemplo de evolução paralela. As glândulas salivares de todos os mamíferos, incluindo humanos, possuem o potencial para a produção eficiente de veneno, bastando novas mutações e outros processos evolutivos para a modificação de proteínas já existentes na saliva ou acúmulo de novos genes (ex.: a partir de duplicações genômicas) para a produção de proteínas tóxicas. Aliás, toxinas serina-protease-baseadas (ex.: enzimas calicreínas) são quase universais nos sistemas orais de peçonha nos amniotas, e, nas cobras, evoluíram a partir de modificação direta de proteínas encontradas na saliva de lagartos. Nos lagartos peçonhentos do gênero Heloderma (ex.: monstro-de-gila, Heloderma suspectum), proteínas secretadas ricas em cisteína (CRISPs), as quais são expressas nas glândulas salivares, são comumente encontradas na peçonha desses répteis.
Podemos citar, inclusive, que ratos machos podem representar um intermediário evolutivo nesse sentido. Experimentos na década de 1980 (Hiramatsu et al.) já mostraram que ratos do sexo masculino produzem compostos na saliva que são altamente tóxicos quando injetados em outros ratos e similares ao grupo proteico das calicreínas. Segundo os autores do novo estudo, sob certas condições ecológicas e subsequente seleção natural, ratos podem continuar produzindo mais proteínas tóxicas na saliva caso isso resulte em maior sucesso reprodutivo – primeiro atacando outros machos rivais, depois se defendendo de outros predadores, por exemplo – e, então, em alguns poucos milhares de anos, podemos nos deparar com ratos peçonhentos.
Em outras palavras, a evolução de toxicidade na saliva dos vertebrados pode ser mais comum do que atualmente reconhecido, e a linha entre vertebrados com e sem sistemas orais de peçonha se torna muito menos clara com os novos achados.
Ainda segundo os autores do estudo, apesar de muito improvável, se condições ecológicas favoráveis algum dia existirem para permitir tal processo evolutivo, até mesmo humanos podem se transformar em animais peçonhentos. Ou seja, em um futuro muito distante, talvez chamar alguém de “jararaca” não tenha um sentido tão figurado assim.
> Observação: Peçonha é um veneno ativamente inoculado (ex.: injeção de veneno via presas nas cobras), caracterizando animais peçonhentos. Animais venenosos são aqueles que produzem toxinas (veneno) que são transferidas para o alvo (geralmente atacante) de forma passiva (ex.: pele venenosa de muitas rãs).
(1) Publicação do estudo: https://www.pnas.org/content/118/14/e2021311118
Referência adicional: Okinawa Institute of Science and Technology Graduate University