Raios de tempestade podem ter sido essenciais para a emergência da vida
Em um estudo publicado no periódico Nature Communications (1), pesquisadores propuseram uma fonte alternativa e abundante de fósforo reativo (fosfeto), este o qual é necessário para a síntese de importantes compostos orgânicos constituídos de fósforo (ex.: DNA, RNA, fosfolipídios e ATP – nossa moeda energética). Até o momento era proposto que fosfeto havia chegado à Terra pré-biótica principalmente via meteoritos, mas no novo estudo foi encontrado forte evidência de uma fonte mais promissora de fosfeto nessa época: raios de tempestade.
A vida na Terra provavelmente se originou há cerca de 3,5 bilhões de anos, mas existem evidências de uma origem ainda mais antiga, há cerca de 3,8-4,1 bilhões de anos. Fósforo (P) é um dos elementos chaves para a vida como a conhecemos, e está envolvido na estrutura de várias biomoléculas essenciais, como os ácidos nucléicos. Enquanto que fósforo abiótico terrestre está amplamente distribuído na superfície da Terra na forma oxidada de fosfato (PO43-), esta está associada com minerais como a apatita, a qual é efetivamente insolúvel na água e indisponível para reações necessárias para a origem da vida. Em contraste, fósforo reduzido como fosfeto (P0) na forma do mineral schreibersite, (Fe, Ni)3P, é altamente reativo.
Quando em contato com água, o mineral schreibersite forma fosfato ativado e hidratado capaz de formar cruciais moléculas orgânicas simples, como fosfato de glicerol, nucleosídeos e fosfocolina, e espécies intermediárias de fósforo, como hipofosfito (H2PO2-) e fosfito (HPO32-). Enquanto tais intermediários dificultariam reações orgânicas, esses compostos podem ainda ter importante papel na origem da vida ao eficientemente reagir com raios ultravioletas (UV) do Sol e HS- dissolvido para formar ortofosfato (PO43-).
Portanto, schreibersite é uma fonte comumente aceita de fosfato para a síntese terrestre pré-biótica de moléculas orgânicas essenciais. Porém, é tradicionalmente assumido que a única fonte plausível em suficiente quantidade desse mineral nos primórdios da Terra foram os impactos de meteoritos, onde o schreibersite é um mineral acessório relativamente comum. Os meteoritos potencialmente forneceram 100 mil a 10 milhões de quilos de fósforo reduzido anualmente ao longo do Hadeano e do Arqueano Inferior, mas a partir de fluxos e distribuições incertas.
No novo estudo, os pesquisadores propuseram que sob certas condições na Terra pré-biótica, a redução de fósforo via raios de tempestade representou um processo mais significativo do que até o momento era apreciado na comunidade científica, fornecendo uma robusta, contínua e ampla fonte de fosfeto.
Quando um raio atinge o solo, o calor gerado no impacto alcança temperaturas de 3000 K (acima de 2700°C), junto a um elevado fluxo de elétrons, formando uma rocha chamada de fulgurita. No estudo, os pesquisadores analisaram uma amostra de fulgurita formada quando um raio de tempestade atingiu uma propriedade em Glen Ellyn, Illinois, EUA, em 2016. Inesperadamente eles descobriram que a amostra tinha uma grande quantidade de schreibersite.
Nesse sentido, os pesquisadores construíram um modelo para estimar a quantidade de raios que atingiam a Terra em torno de 3,5 bilhões de anos atrás. Considerando as prováveis condições climáticas, geológicas e atmosféricas da Terra nesse período, os pesquisadores estimaram que 1-5 bilhões de raios atingiam a superfície do nosso planeta anualmente comparado como o valor moderno de ~560 milhões de raios/ano. Cálculos subsequentes sugeriram que, anualmente, os raios na Terra pré-biótica formavam 10-1000 kg de fosfeto e 100-10000 kg de fosfito e hipofosfito, concentrados em áreas continentais e nas regiões tropicais.
Esse cenário fornece uma alternativa de fósforo reativo pré-biótico independentemente do fluxo de meteorito atingindo planetas como a Terra, potencialmente facilitando a emergência de vida terrestre indefinitivamente.
(1) Publicação do estudo: https://www.nature.com/articles/s41467-021-21849-2
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