Cientistas conseguem reverter o relógio biológico de ratos, recuperando a perda de visão
Em um impactante estudo recentemente publicado na Nature (1), pesquisadores reportaram ter restaurado com sucesso a visão de ratos com idade avançada ao 'resetar' um número entre milhares de marcadores químicos que se acumulam na estrutura do DNA (marcadores epigenéticos) à medida que as células envelhecem. O feito sugere uma potencial nova estratégia para reverter o envelhecimento nos humanos, ao reprogramar diferentes células a um estado 'mais jovem' no qual elas possuem uma melhor capacidade de reparar ou substituir tecidos danificados.
O envelhecimento é geralmente considerado de ser um processo unidirecional, similar ao aumento da entropia na termodinâmica, ou seja, irreversível no contexto de um sistema fechado. Porém, sistemas vivos são abertos, e, em alguns casos a idade biológica pode ser totalmente resetada, como, por exemplo, no caso águas-vivas "imortais" e através da clonagem de animais via transferência nuclear.
Evidência de estudos com leveduras e mamíferos dão suporte para uma teoria de informação do envelhecimento, na qual a perda de informação epigenética desregula o padrão de expressão genética da juventude, levando a uma disfunção celular e envelhecimento. Os padrões de metilação do DNA - o mais comum tipo de marcador epigenético, onde radicais metila (-CH3) se ligam à estrutura química do DNA, alterando a expressão ou regulação de genes - são inicialmente definidos durante o desenvolvimento embrionário para estabelecer função e tipo de célula (diferenciação celular, para a formação de diferentes tecidos e órgãos no corpo). Durante o avanço da idade (envelhecimento), por razões que atualmente não são claras, esses padrões mudam de tal forma que é possível calcular a idade de um organismo (relógio biológico) com base nas mudanças sofridas na metilação do DNA (2).
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> Para mais informações sobre epigenética, acesse: Epigenética, Plasticidade Fenotípica e Evolução Biológica
(2) Sugestão de leitura: Cientistas encontram fórmula comparativa entre a idade de cães e de humanos
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Em culturas celulares, a expressão ectópica de quatro fatores de transcrição Yamanaka (OSKM) - OCT4, SOX2, KLF4 e MYC - podem reprogramar culturas de células somáticas no sentido de se tornarem células embrionárias pluripotentes (capazes de se diferenciarem em diferentes tecidos), um processo que apaga a identidade celular prévia e reseta a idade de metilação do DNA. Em experimentos com ratos, já foi mostrado que a adição de quatro genes (transgenes) ao material genético desses animais codificando os fatores de transcrição OSKM é capaz de estender, substancialmente, a expectativa de vida. Porém, a contínua expressão desses quatro fatores em ratos também frequentemente induz teratomas ou é fatal dentro de alguns dias, principalmente devido a efeitos de displasia (anomalias) nos tecidos.
Para contornar esse último problema, os pesquisadores no novo estudo buscaram uma forma de resetar o epigenoma sem apagar a identidade das células (ou seja, sem torná-la pluripotente). Entre os fatores de transcrição OSKM, eles identificaram que o fator MYC é um oncogene (genes relacionados com o aparecimento e crescimento de tumores) que reduz a expectativa de vida nos ratos e que não é necessário para a iniciação da reprogramação celular. Nesse sentido, os pesquisadores usaram apenas a expressão dos outros três fatores (OCT4, SOX2 e KLF4) em células de fibroblastos de ratos idosos. Os resultados mostraram que, mesmo sem o fator MYC, a expressão do OSK promoveu um perfil de mRNA mais jovem - associado a vários genes alterados com a idade (Lmnb1, Chaf1b, famílias H2a/H2b, etc.) -, sem aparente perda de identidade celular ou desenvolvimento de anomalias.
No próximo passo do estudo, os pesquisadores buscaram testar essa habilidade de rejuvenescimento na recuperação da habilidade do sistema nervoso central de regenerar seus componentes (habilidade perdida durante o desenvolvimento inicial dos mamíferos). Para isso os pesquisadores escolheram como alvo nervos retinais (células retinais do gânglio, RGCs), injetando um vetor viral carregando os fatores OSK no olho de ratos idosos. O objetivo era verificar se nervos reinais danificados seriam regenerados - algo que nenhum tratamento até o momento foi capaz de fazer. Os resultados foram positivos, e os pesquisadores confirmaram que os nervos retinais, de fato, foram regenerados (rejuvenescidos). E mais: em três ratos (11 meses de idade) com problemas visuais (perda de visão associada com o avanço da idade ou glaucoma), uma boa visão foi restaurada ou melhorada significativamente com a estratégia terapêutica.
Comparando células RGCs de ratos idosos (12 meses) e ratos mais jovens (5 meses), os pesquisadores identificaram 464 genes epigeneticamente alterados (especialmente via metilação) durante o envelhecimento, com cerca de 90% desses genes sendo restaurados para níveis mais jovens com o tratamento via OSK. É ainda incerto, porém, como as células codificam e armazenam informação epigenética de rejuvenescimento - ativada pela expressão dos fatores OSK. Possibilidades para esse armazenamento incluem modificações do DNA, proteínas ligadas ao DNA, fatores modificantes de cromatina RNA-guiados, e híbridos RNA-DNA estabelecidos no começo da vida do indivíduo.
Apesar dos experimentos terem envolvido apenas ratos, os resultados fortemente sugerem que a reprogramação epigenética, seja por terapia genética ou outros meios, pode promover a reparação e reversão de envelhecimento em tecidos do corpo humano, com potencial de tratamento para inúmeras doenças.
(1) Publicação do estudo: https://www.nature.com/articles/s41586-020-2975-4