Síndrome pós-COVID-19 danifica severamente o coração das crianças, assintomáticas ou não
- Atualizado no dia 20 de dezembro de 2021 -
Segundo um estudo de revisão sistemática publicado no periódico The Lancet (1) (EClinicalMedicine), a relativamente rara síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), associada com a COVID-19 (doença causada pelo novo coronavírus, SARS-CoV-2), danifica seriamente o coração, em uma extensão tal que algumas crianças irão necessitar de monitoramento e intervenções pelo resto da vida.
Mas o achado mais preocupante do estudo é que mesmo crianças saudáveis e assintomáticas podem desenvolver SIM-P, mesmo sem nenhum sinal três ou quatro semanas após a infecção inicial. Crianças podem não expressar quaisquer sintomas no trato respiratório superior e, sem nem ao menos saberem que estavam infectadas pelo SARS-CoV-2, podem desenvolver subitamente um grave quadro de super-inflamação no corpo, deflagrando a síndrome. E dezenas de crianças já morreram com a condição.
SÍNDROME INFANTIL PÓS-COVID-19
A disseminação do SARS-CoV-2 continua avançando de forma acelerada em vários países, especialmente em meio às variantes de preocupação. Apesar de reportes iniciais sugerirem que as crianças infectadas são altamente resilientes à COVID-19 e que geralmente progridem com um quadro clínico leve, a partir de abril uma nova e potencialmente letal doença infantil emergiu.
Os primeiros casos foram descritos na literatura acadêmica em maio de 2020, em Londres, Reino Unido, onde oito pacientes pediátricos severamente doentes apresentaram um quadro de choque hiper-inflamatório com o envolvimento de múltiplos órgãos. Sintomas comuns reportados foram febre alta, vermelhidão, conjuntivite, edema periférico e sintomas gastrointestinais. A condição foi inicialmente referida como síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica temporariamente associada com a COVID-19 (PIMS-TS, na sigla em inglês). Eventualmente, à medida que mais casos emergiram ao redor do mundo, a doença foi renomeada como síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P) pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
De 1º de abril de 2020 até 13 de fevereiro de 2021, o Brasil contabilizou 736 casos e 46 óbitos de crianças e adolescentes pela Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (SIM-P) associada à Covid-19, segundo dados recentes do Ministério da Saúde (2). A letalidade foi maior entre casos que apresentaram saturação de O2<95% e ureia alterada; e menor nos que apresentaram manchas vermelhas, usaram imunoglobulinas e anticoagulantes (6). Nos EUA, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) contabilizou um total de 5973 casos de SIM-P e 52 mortes (3).
Aqui no Brasil, as crianças de 0 a 4 foram as mais atingidas pela síndrome, com 42,53% dos casos. Em seguida, crianças de 5 a 9 anos, com 33,42%. Na faixa etária de 10 a 14 anos, com 21,06%, e adolescentes de 15 a 19 anos, com apenas 2,99%. Os casos entre os meninos foram mais frequentes que entre as meninas. E essa diferença aumenta com a idade até os 15 anos. O número de casos entre adolescentes de 15 a 19 anos foi quase o mesmo, independentemente do sexo.
A síndrome possui características similares à doença de Kawasaki e à síndrome de choque tóxico - especialmente no envolvimento vascular -, mas com um quadro clínico específico significativamente distinto, principalmente em termos de assinaturas inflamatória e de auto-anticorpos.
Os sintomas incluem alergia, problemas cardíacos e de coagulação no sangue, vômito, diarreia, dor abdominal, febre persistente, erupção cutânea, olhos vermelhos, inflamação e mau funcionamento de um ou mais órgãos. Assim como a doença de Kawasaki, costuma se apresentar com inflamação sistêmica e sintomas gastrointestinais, evoluindo com complicações cardiovasculares e levando pacientes à falência múltiplas de órgãos e choque hemodinâmico.
Em um estudo publicado em setembro do ano passado periódico Nature Medicine (4), pesquisadores descreveram em maiores detalhes a MIS-C após a análise de 25 crianças com a condição, entre as quais 17 delas se mostraram soropositivas para o SARS-CoV-2 (indicando infecção prévia). Segundo os resultados da análise, crianças com MIS-C possuem níveis elevados de citocinas (moléculas de sinalização inflamatória) e níveis reduzidos de células brancas sanguíneas chamadas de linfócitos (células-T e -B no caso). Essas mudanças imunes se mostraram bem complexas e distintas daquelas observadas no Choque Tóxico e na Doença de Kawasaki.
Em um estudo mais recente, publicado no periódico Science Immunology (5), pesquisadores confirmaram que a SIM-P, assim como nos adultos com o quadro mais grave de COVID-19, é marcada com altos níveis de inflamação e de ativação imune (incluindo linfopenia células-T-tendenciosa). Dos pacientes com SIM-P investigados no estudo (14 crianças no total), todos testaram positivo para anticorpos contra o SARS-CoV-2. Porém, nos pacientes com MIS-C, o grau de ativação imune às vezes excedia aquele dos pacientes adultos com os quadros mais severos, especialmente células-T associadas com o sistema vascular (robusta ativação de células-T CX3CR1+ CD8+ de patrulha vascular), e potencialmente explicando as sérias inflamações cardíacas e aneurismas em alguns pacientes. Além disso, enquanto que adultos com COVID-19 severa possuem ativação imune sustentada, esse quadro nos pacientes com SIM-P é transitório, melhorando ao longo do tempo (concomitante com o declínio da ativação imune). De fato, muitas crianças com SIM-P melhoram rápido com terapias que suprimem o sistema imune.
Ainda é incerto a causa exata da SIM-P além do envolvimento da infecção pelo SARS-CoV-2. A longa fase pré-sintomática observada e um rápido desenvolvimento de SIM-P severa pode ser inconsistente com uma infecção crônica ou indolente e sugere uma segunda possibilidade: um gatilho adicional ocorrendo ~2-3 semanas após a infecção inicial com SARS-CoV-2. Esse novo evento pode ser tanto virológico (ex.: partículas virais infecciosas escondidas em algum tecido do corpo após a infecção inicial) quanto devido a uma infecção secundária ou a um gatilho auto-reativo.
Felizmente, como mencionado, tratamentos bem estabelecidos visando acalmar o sistema imune, como corticosteroides e imunoglobulinas, são suficientes para resolver o quadro de MIS-C, com o sistema imune das crianças afetadas voltando ao normal no final da recuperação, e relativamente poucas mortes diretas reportadas. Porém, podem existir danos de longo prazo.
DANOS NO CORAÇÃO
No estudo de revisão, os pesquisadores analisaram 39 estudos observacionais envolvendo dados clínicos de 662 pacientes pediátricos com SIM-P. Eles encontraram que 71% das crianças (470) necessitaram ser internadas na unidade de tratamento intensivo (UTI), apesar de apenas 11 delas terem ido a óbito (1,7%). Tempo médio de estadia no hospital foi de 8 dias. Os sintomas clínicos mais comuns foram febre (100%), dor abdominal ou diarreia (74%) e vômito (68%). Marcadores inflamatórios, coagulativos e cardíacos no plasma sanguíneo mostraram-se consideravelmente anormais. Ventilação mecânica e oxigenação via membrana extracorpórea foram necessários em 22% e 4,5% dos pacientes, respectivamente.
Em torno de 60% dos pacientes manifestaram choque e 54% dos pacientes que tiveram um teste ecocardiográfico (EKG) receberam um resultado anormal.
A maioria das 662 crianças sofreram complicações cardíacas, como indicado por marcadores como a troponina, a qual é usada com grande acuracidade em adultos para o diagnóstico de ataques cardíacos. Aliás, níveis de troponina mostraram-se quase 50 vezes acima do normal nas crianças com MIS-C. Quase 90% das crianças (581) foram submetidas a um eletrocardiograma pelo fato de terem experienciado uma significativa manifestação cardíaca da doença, provavelmente decorrente do alto nível de inflamação no corpo. Os danos incluíram:
- Dilatação dos vasos sanguíneos coronários, um fenômeno também visto na doença de Kawasaki.
- Fração de ejeção reduzida, indicando uma habilidade reduzida para o coração bombear sangue oxigenado para os tecidos do corpo.
- Quase 10% das crianças tiveram um aneurisma de um vaso coronário.
Segundo os pesquisadores, os pacientes pediátricos com um aneurisma são os que estão em maior risco de um evento cardíaco futuro, e os quais irão requerer significativa e contínua observação seguida de múltiplos exames de ultrassom para ver se o problema irá se resolver ou se é algo que esses pacientes terão para o resto das suas vidas.
Apesar de muitos dos pacientes analisados com quadros mais sérios serem saudáveis, quase metade deles tinham uma condição médica prévia, e entre esses últimos, metade dos indivíduos eram obesos ou tinham sobrepeso (reforçando mais uma vez que o excesso de massa adiposa no corpo é um sério fator de risco para a COVID-19). E enquanto a maioria das crianças irão sobreviver à síndrome pós-COVID-19 com um suporte hospitalar básico, os efeitos a longo prazo dessa condição são atualmente desconhecidos. Soma-se o fato do crescente colapso do sistema de saúde no Brasil, dificultando um tratamento adequado desses pacientes. Portanto, cuidados de prevenção à infecção pelo SARS-CoV-2 são tão importantes nas crianças quanto nos adultos, incluindo reforço nas medidas de controle epidêmico (aceleração das vacinas, uso universal de máscaras, distanciamento social, rastreamento e isolamento de casos).
(1) Publicação do estudo: The Lancet
Referência adicional:
- (2) https://pebmed.com.br/sindrome-ligada-a-covid-19-e-responsavel-por-46-obitos-de-criancas-e-adolescentes-no-brasil/
- (3) https://covid.cdc.gov/covid-data-tracker/#mis-national-surveillance
- (4) https://www.nature.com/articles/s41591-020-1054-6
- (5) https://immunology.sciencemag.org/content/6/57/eabf7570
- https://jamanetwork.com/journals/jamapediatrics/fullarticle/2773981
- (6) https://www.scielosp.org/article/ress/2021.v30n4/e2021267/pt/