Reportado sério caso de intoxicação com a ivermectina em um garoto de 13 anos
Nos últimos meses, o vermífugo Ivermectina emergiu como uma nova promessa terapêutica contra a COVID-19, após demonstrar efeitos antivirais in vitro contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2). Porém, as concentrações usadas in vitro para a inibição do SARS-CoV-2 mostraram-se dezenas de vezes maior do a concentração máxima no plasma de um humano após administração oral da dose aprovada pelas agências de saúde quando dada em jejum (1). Mas mesmo com essa implausibilidade farmacológica de eficácia e falta de evidência científica mínima de suporte, o uso da ivermectina continua sendo promovida em larga escala aqui no Brasil, com o fármaco sendo recomendado inclusive como profilaxia pré-exposição.
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(1) Para mais informações, acesse: A Ivermectina é eficaz para o tratamento da COVID-19?
Apesar de ser considerado um fármaco seguro, grávidas não podem tomá-lo, devido a possíveis danos ao feto, assim como crianças menores do que 5 anos de idade. Além disso, efeitos colaterais não-esperados, especialmente via potenciais interações medicamentosas, não podem ser ignorados. Overdoses de Ivermectina em humanos têm sido associadas com vômito, taquicardia e ECG anormal, significativas flutuações na pressão sanguínea, efeitos no sistema nervoso central (tontura, ataxia) e distúrbios visuais (midríase).
Agora, em um caso descrito no periódico The New England Journal of Medicine (1), um evento de grave toxicidade com esse fármaco foi reportado após a ingestão de uma única dose, devido a uma mutação deletéria no gene ABCB1.
A ivermectina é considerada um fármaco muito seguro graças à sua habilidade de ser eliminada pelo transportador cassete ligante de ATP subfamília B membro 1 (ABCB1) - também conhecido como glicoproteína-P e MDR1 - na barreira sangue-cérebro. Em algumas linhagens de cães, como Collies, os quais são homozigóticos para uma mutação no gene ABCB1, e em ratos cujo gene foi desativado em laboratório, a ivermectina induz desordens neurológicas que podem ser fatais. Alguns casos de desordens neurológicas têm sido reportados em humanos após tratamento com ivermectina, mas era incerto até o momento a associação com mutações deletérias no gene ABCB1.
Nesse sentido, pesquisadores reportaram o caso de um menino de 13 anos admitido na unidade de tratamento intensivo (UTI) por distúrbios de consciência. O paciente tinha recebido um única dose oral de ivermectina (0,23 mg por quilograma de massa corporal) para prevenir infecção por sarna 2 horas e 30 minutos antes da manifestação do quadro neurológico. Sua condição piorou 6 horas após a administração da ivermectina, com persistentes e graves sinais neurológicos, incluindo coma, ataxia, sinais piramidais e diplopia binocular, assim como dor abdominal e vômito. Ele foi monitorado por 48 horas; durante esse período, o paciente mostrou progressiva até total recuperação.
Intoxicação pela ivermectina foi suspeita, desde que encefalopatia e coma são efeitos colaterais bem conhecidos do tratamento de ivermectina em animais não-humanos e considerando que outras causas esperadas de coma foram descartadas. O sequenciamento do gene ABCB1 identificou que o paciente era heterozigótico para duas mutações: NC_000007.13(NM_000927.4):c.2380C→T
(transição citosina-para-timina no éxon 20) e NC_000007.13(NM_000927.4):c.3053_3056d
elITTGA (uma deleção de 4 bp no éxon 25). Análise genética na família do paciente confirmou segregação alélica.
Cada mutação identificada gerava um códon de parada que predizia duas incompletas cópias do transportador proteico MDR1, ambas as quais não possuíam o domínio nucleotídeo-ligante C-terminal que é essencial para a atividade de transporte do fármaco em questão. A perda da atividade do transportador no paciente teria resultado em uma falha na proteção do cérebro e provavelmente teria induzido uma alta exposição do sistema nervoso central à ivermectina e os efeitos tóxicos observados.
Nesse sentido, temos mais um efeito colateral da ivermectina que precisa entrar na sua bula: pacientes com mutações no gene ABCB1 associadas à uma perda de função do transportador MDR1 não podem ser expostos a esse fármaco. A seriedade da intoxicação observada no adolescente de 13 anos implica que muito cuidado deve ser tomado na prescrição da ivermectina e de outros substratos do transportador MDR1, especialmente considerando a possibilidade de regiões ao longo do mundo possuir populações com uma maior prevalência de mutações do tipo.
(1) Publicação do caso reporte: NEJM