Estudo reforça a hipótese do Mundo de RNA: crucial evolução química é demonstrada
O Mundo de RNA é uma das mais aceitas hipóteses tentando explicar a origem da vida via evolução química, prevendo uma crescente complexidade a partir de moléculas auto-replicantes de RNA (ácido ribonucleico) (1). Mas como ocorreu a transição para o próximo estágio, ou seja, onde RNA passou a codificar informações e guiar a síntese proteica com o auxílio de proteínas catalisadoras?
(1) Leitura recomendada: Origem da Vida: O que sabemos até agora?
Algo comum em todas as formas de vida é o processo de tradução, onde RNA ribossômico (rRNA) e proteínas associadas catalisam a formação de peptídeos com a ajuda do RNA transportador (tRNA) a partir de instruções no material genético (nos eucariontes sendo enviadas do DNA através de um RNA mensageiro, ou mRNA); o tRNA funciona como um carregador de aminoácidos (2). Análises genômicas sugerem que a tradução ribossômica é um dos mais antigos processos evolucionários, sendo marcado por imensa complexidade e sugerindo uma evolução química gradual. Da perspectiva do Mundo de RNA, em algum ponto o RNA deve ter ganhado a habilidade de instruir e de catalisar a síntese, inicialmente, de pequenos peptídeos. Isso teria iniciado a transição de um mundo puramente de RNA para um Mundo RNA-Peptídeo.
(2) Leitura recomendada: Cientistas "brincando de Deus": Letras artificiais no DNA
No mundo RNA-peptídeo, ambas as espécies moleculares teriam co-evoluído (quimicamente) no sentido de ganhar cada vez mais eficiência replicante e de tradução.
Agora, em um estudo publicado na Nature (Ref.1), pesquisadores demonstraram experimentalmente que esse cenário transicional é plausível e pode ter realmente ter sido o responsável pela emergência do rRNA e, eventualmente, da vida como a conhecemos. Nos experimentos, foram analisadas as propriedades químicas de nucleosídeos não-canônicos (3), estes os quais estão presentes hoje em todas as moléculas de rRNA e de tRNA e podem ser traçados até o último ancestral comum. De fato, esses nucleosídeos são considerados hoje "fósseis moleculares vivos" do Mundo de RNA.
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(3) Nucleotídeos (ou bases) canônico são as quatro famosas bases nitrogenadas que constituem exclusivamente o mRNA: guanina, adenina, uracila e citosina. Bases não-canônicas são bases distintas e com funcionalidades diversas (ex.: estabilizando ligações) que permitem o trabalho efetivo do tRNA e do rRNA.
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Para as análises experimentais, pares de cadeias de RNA foram usados, cada uma das cadeias em um par ligada a um nucleotídeo não-canônico: t6A (capaz de se ligar a aminoácidos) ou mnm5U.
Os resultados dos experimentos - os quais também simularam ciclos reacionais secos-molhados sob diferentes cenários de aquecimento (4) - mostraram que os nucleosídeos não-canônicos são capazes de estabelecer síntese peptídica diretamente sobre RNA, sem a necessidade de ribossomos, e criando complexas moléculas quiméricas de RNA-peptídeos (demonstrando que o Mundo RNA-Peptídeo é possível). Essas quimeras foram capazes de sintetizar cadeias peptídicas de até 15 aminoácidos de comprimento. Eles mostraram também a emergência espontânea de funcionalidades químicas do RNA e dos aminoácidos nas estruturas quiméricas em meio aos curtos processos observados de evolução química (crescente complexidade).
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(4) "Ciclos secos-molhados" faz menção a uma condição pré-biótica proposta para experimentos de evolução química de origem da vida. Para mais informações, acesse: Origem da Vida: O que sabemos até agora?
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Os achados trazem mais peso de evidência para o Mundo de RNA, apontando que a formação de peptídeos e de RNA parece ter sido sinérgica nesse cenário: moléculas de RNA podem ter ajudado a formar peptídeos, e peptídeos podem ter ajudado a estabilizar e formar cadeias de RNA cada vez mais longas.
REFERÊNCIA
- Müller et al. (2022). A prebiotically plausible scenario of an RNA–peptide world. Nature 605, 279–284. https://doi.org/10.1038/s41586-022-04676-3